Pró-Brasil: decolagem sem empuxo

Quarta-feira, 20 de maio de 2020

Por Patrick Fontaine Reis de Araujo (doutor em Economia pela UFRJ e professor de Economia da UNIFAL-MG)

Os planos plurianuais de desenvolvimento já foram uma tendência do século XX. Coincidentemente ou não, os anos de maior crescimento da economia mundial foram anos em que essa prática esteve disseminada entre os mais diversos países, fossem eles capitalistas ou socialistas. A retomada da economia estadunidense após o Grande Crash de 1929 foi articulada pelo New Deal. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Plano Marshall lastreia as estratégias nacionais de desenvolvimento na Europa, e o planejamento aos poucos se dissemina também nos países subdesenvolvidos. No Brasil, o mais emblemático desses planos foi o “50 anos em 5” de JK, mas a prática se repetiu em diversas outras ocasiões ao longo de nossa história econômica, inclusive ao longo do período conhecido como Milagre Econômico[1].

O que esses planos têm em comum é o fato de preconizarem o Estado como coordenador de uma série de projetos de desenvolvimento produtivo em áreas entendidas como estratégicas. A rigor, trata-se da escolha de alguns que setores que sejam ao mesmo tempo a vanguarda tecnológica e compatíveis com o tecido econômico preexistente. O Estado, então, fomenta o aparelhamento e a organização desses setores que, por serem de vanguarda, terão demanda crescente, tanto interna quanto externa, e algum espaço para a entrada de novos competidores. Essa é a maneira como economias atrasadas conseguem desenvolver capacidade produtiva em nichos de alto valor – a exemplo do Brasil no mercado de aviação – e que permitiu que um país como a Coreia do Sul passasse de uma economia rural estagnada a um país produtor e exportador de equipamentos tecnológicos e até mesmo de cultura pop.

Nesse sentido, o Pró-Brasil é uma iniciativa que encontra respaldo nas experiências históricas de desenvolvimento. É um movimento na direção certa, que abandona a retórica da austeridade – que resultou em estagnação e recessão – e situa os esforços na direção de planejar, a partir do Estado, uma retomada do crescimento econômico. A conjuntura da Crise do Covid-19, inclusive, é extremamente favorável a políticas monetárias e fiscais expansionistas. A demanda global colapsou, a quebra nas cadeias globais de oferta não teve o impacto que inicialmente se esperava, e o estoque de força de trabalho desocupada é imenso. Trata-se, portanto, de uma situação sui generis, na qual o risco inflacionário se vê despistado por uma enorme capacidade produtiva ociosa que não encontra, par force, demanda global[2]. Em outras palavras, é o momento ideal para uma inversão pública de grande escala. Esses investimentos auxiliariam na recomposição da renda e da demanda agregada, ao mesmo tempo em que resolveriam severos passivos de infraestrutura, além de potencialmente alavancar setores de fronteira. É uma ideia boa, e na hora certa.

Mas, como diz o sábio provérbio alemão, o diabo mora nos detalhes. Planos de desenvolvimento são movimentos intensos de transformação na estrutura econômica, que inevitavelmente geram algum grau de insatisfação na parcela mais tradicional e conservadora dos agentes econômicos. O Estado se expõe como agente proativo, e será responsabilizado pelas alterações nos níveis relativos de renda individual. E é exatamente por isso que um plano dessa natureza não pode ser comedido. A escala e a abrangência devem ser amplas o suficiente para que as vantagens de um processo de desenvolvimento se disseminem em todo o sistema econômico, envolvendo toda a coletividade. Caso contrário, as forças retrógradas podem se colocar contra o processo em curso, minando as possibilidades de sucesso da estratégia, como aponta Hirschman[3]:

           “Se o desenvolvimento se inicia em alguns pontos, em vez de o fazer por toda parte, ao mesmo tempo, naturalmente então surgem as tensões entre o setor moderno e o tradicional e, justamente quando o setor moderno gerar a habilidade para investimento, o tradicional criará atitudes e agirá de modo a, na realidade, corroer e minar o progresso econômico do país. (…) [A] orientação da política de desenvolvimento econômico tem que se moldar em certo conhecimento dessas forças de estagnação e declínio, no conhecimento das áreas onde elas incidem com maior virulência e eficácia e no modo pelo qual podem ser paralisadas. (…) [S]e o acréscimo de rendimento atinge o ponto em que as vantagens do desenvolvimento ultrapassam os transtornos que este traz, a atividade se torna interessante e é gradativamente aumentada e o país atingirá as metas desenvolvimentistas.” (Hirschman, 1961, p.79)

Apesar de ainda muito incipientes, as informações divulgadas sobre o Pró-Brasil já provém uma ideia da escala que o projeto teria: são previstos 280 bilhões de reais, investidos ao longo de dez anos, dos quais 250 bilhões se darão sob a forma de concessões públicas ao setor privado. Prevalecendo este desenho, o problema se apresenta de cara em pelo menos dois aspectos: o volume dos investimentos e o instrumento para realizar os investimentos. O volume dos recursos é da ordem de 4% do PIB, num momento em que a retração da economia pode superar os 10% do PIB. Sobretudo se investido ao longo de dez anos, esse volume não será capaz de prover o empuxo necessário para que a economia deixe o atual estado de inércia e se ponha em movimento, e a estagnação tenderá a se perpetuar. A priorização do setor privado, por outro lado, nesse momento, é absolutamente equivocada. O setor encontra-se combalido e retraído, e as empresas têm adotado estratégias defensivas para tentar preservar sua solvência. Assim, não se pode esperar que um esforço de investimentos massivos, complexos, e de longo prazo de maturação venha daí. Mais provável será a instrumentalização do programa de concessões para estratégias de recomposição de caixa e de pagamentos de passivos a credores, minimizando ao máximo os recursos de fato postos em movimento. Em outras palavras, um plano com esse desenho, e na atual conjuntura, tem todas as chances de fracassar.

Parece claro, ademais, que a retomada do planejamento estratégico da economia não pode ser regida pela batuta de um ministro como Paulo Guedes. O ministro sempre foi coerentemente contrário a qualquer iniciativa estatal[4], e agora se mostra um indivíduo sem imaginação e completamente despreparado para articular uma retomada econômica que tenha o Estado como principal ator do processo. Aliás, ele próprio já se mostrou contrário ao que seria o Plano Marshall da Casa Civil[5]. Nesse sentido, a resistência ao progresso econômico – retomando as palavras de Hirschman – estaria no próprio Ministério da Economia, e, nessas circunstâncias, o que se pode esperar do Pró-Brasil é, ao mesmo tempo, um fracasso do plano de desenvolvimento, e um desgaste desse tipo de estratégia. Seria um agravamento e um prolongamento de nossa crise e um desperdício de uma oportunidade histórica[6]. E o mau exemplo do Pró-Brasil servirá por anos a fio de espantalho para que os neoliberais – dentre os quais o próprio Guedes – refloresçam para criticar qualquer estratégia de desenvolvimento nacional, e retomem a já conhecida retórica da austeridade.

[1]O Milagre Econômico, na literatura econômica, é o período entre 1968 e 1973, quando a taxa de crescimento foi em média superior a 10% a.a. em paralelo com uma taxa de inflação em desaceleração.

[2]Nesse sentido, essa crise, até o momento, se parece muito mais com o Grande Crash de 1929 do que com a Segunda Guerra Mundial, quando a capacidade produtiva mundial ou foi destruído ou estava ocupada com o próprio esforço de guerra.

[3]Albert Otto Hirschman é um reconhecido teórico do desenvolvimento econômico, de origem alemã mas radicado nos EUA, onde foi professor em Berkeley, Yale, Columbia e Harvard. Após uma década em Harvard, Hirschman foi convidado a se estabelecer no prestigioso Institute for Advanced Studies, em Princeton, instituto que abrigou Albert Einstein e quarenta outros ganhadores do Prêmio Nobel.

[4]A título de exemplo, Guedes propôs, numa coletiva de imprensa nos EUA, vender tudo, inclusive o palácio presidencial: https://www.youtube.com/watch?v=gVrisWpyGAI

[5]https://veja.abril.com.br/economia/guedes-aposta-em-privatizacoes-contra-o-plano-marshall-da-casa-civil/

[6]O momento é de estratégias econômicas cada vez mais ousadas ao redor do mundo. Políticas antes rechaçada pelo sistema financeiro internacional – como a expansão monetária, aumentos dos deficits públicos e a renda mínima cidadã – agora são moeda corrente nas mais diversas nações do planeta.