O vilão era o retrato da falecida

Talvez não seja por acaso que esse romance de Carolina Nabuco, transformado em telenovela pela Rede Globo em 1978, tenha inicialmente um travo de Romantismo inglês. Há nele certo interesse em investigar a situação da mulher dentro do casamento, essa gaiola que para muitas é de ouro, para outras de um arame bem ordinário, porém difícil de entortar. Mas A sucessora (1934) é bem melhor como projeto do que como realização, e desperdiça em boa parte um tema bastante interessante.

O tema é o peso de uma lembrança, representado por um retrato de mulher: Alice, a falecida consorte de Roberto, o industrial riquíssimo com quem se casa Marina, a protagonista. Marina é, apesar de instruída, uma mocinha da roça; inicialmente vive na fazenda da família, no interior fluminense, debaixo do rigoroso tradicionalismo católico de sua mãe, que com frequência verbaliza evidente preconceito contra os descendentes de escravos de cujo trabalho depende seu sustento.

Marina era noiva de seu primo Miguel, mas por pura conveniência e até mesmo por pena do rapaz. Ao conhecer Roberto numa festa de São João, imediatamente rompe o noivado e logo em seguida já está casada com o ricaço, que também é muito charmoso. Conto de fadas para moças sonhadoras, enredo de Sétimo Céu. O problema é que, logo ao fazer sua entrada na mansão do marido, Marina depara com um ambiente todo impregnado da presença de Alice. Há sobretudo o retrato, feito por um pintor francês, que materializa a presença opressora da extinta, a qual passa a pesar sobre a insegurança de Marina, que é muito mais bonita, porém dotada de um equilíbrio mental, digamos, insuficiente.

Sobre conexões do livro, é interessante lembrar que Carolina Nabuco acusou a escritora inglesa Daphne Du Maurier de haver copiado seu enredo e até mesmo diálogos no romance Rebecca (1938), adaptado para o cinema por ninguém menos que Alfred Hitchcock. A fofoca talvez já tenha rendido algum estudo comparativo; espera-se que a britânica tenha feito um trabalho literário melhor, pois o da filha de Joaquim Nabuco tem falhas típicas de principiante. Para não dizer mais nada a respeito: em certa passagem o primo intelectual e ex-noivo pergunta a Marina se ela se lembra de um trecho de Proust, aquele autor de um livro com mais de 2.500 páginas distribuídas em sete volumes cheios de parágrafos que duram dezenas de linhas.

Isso não quer dizer que a leitura não seja atraente. A sucessora cativa do começo ao fim. O tipo de fantasia casamentícia com que lida a autora, evidentemente, é datado, mas ela conseguiu produzir um drama capaz de gerar empatia com a protagonista. Marina, apesar de preguiçosa e sem projeto de vida, é apresentada de maneira muito simpática, e por isso tendemos a desejar que seu sofrimento tenha fim.

Seu sofrimento é legítimo. Tendo-se apaixonado de modo fulminante pelo marido, não se conforma à condenação de ser para sempre uma sombra de Alice, cujos requintes de gosto artístico e trato social não está preparada para igualar. E, em sua defesa, diga-se que Marina não tem nenhum interesse pelo dinheiro de Roberto nem pelo seu fútil círculo de amizades elegantes. Por isso mesmo é que um carnaval passado entre o Rio de Janeiro e Petrópolis se transforma, para ela, em verdadeira via crucis que a faz decidir-se a abandonar o palacete em que vive e, consequentemente, o casamento.

Até aí, sem contar os defeitos específicos de fatura ficcional, o enredo vai razoavelmente bem. Mas pelo caminho ficou aquela ilusória impressão de Romantismo inglês, não de todo surpreendente numa escritora que, por conta das incumbências diplomáticas de seu ilustre pai, foi educada na Europa e nos Estados Unidos. O que sobra mesmo é o resíduo de alguns dos piores cacoetes do Romantismo brasileiro, especialmente o alencariano, bem indesejáveis num romance escrito depois da revolução modernista.

Temos, então, a redenção do amor (com direito ao interlúdio nativista totalmente mal colocado) graças a uma gravidez percebida exatamente quando o matrimônio, de olhos vendados, está prestes a quebrar seu precioso pescoço no abismo da incompreensão mútua dos “conjes”, e a uma viagem de três meses pela Europa. Afinal, dinheiro era o que não faltava ao garboso homem de negócios. Numa nova adaptação televisiva de A sucessora, seria recomendável que o casal se mudasse para Miami: o Rio anda muito perigoso para milionários sem conexão com o tráfico ou com as milícias suburbanas.

Título: A Sucessora
Autora: Carolina Nabuco
Gênero: Romance
Páginas: 200
Ano da edição: 2018
ISBN: 978-85-52994-02-2
E-ISBN: 978-85-52994-08-4
Selo: Editora Instante

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.