Croqui narrativo da luta de classes

Passa pelos Estados Unidos, pelo Japão, pela Manchúria (onde presencia a coroação do imperador Pu-Yi, que lhe dá as sementes de soja que introduziram essa cultura no Brasil); na viagem à China, entrevista um passageiro ilustre do navio, Sigmund Freud. Entra na Europa pelo trem Transiberiano (oito dias de viagem); de Moscou, vai à França e, ao passar por Berlim, pede aos membros da Gestapo que a vigiam como “supeita” (pois viera de Moscou) para ter ao menos a experiência de tomar um chope alemão…

O trecho acima, escrito por Geraldo Galvão Ferraz para a segunda edição de Parque industrial (1933), dá uma ideia de quem foi sua mãe. Patrícia Galvão, nascida em São João da Boa Vista (SP), adotou vários outros nomes, mas tornou-se definitivamente Pagu por causa do apelido equivocado que lhe deu o poeta Raul Bopp – ele havia entendido que o sobrenome da escritora era Goulart. O segundo filho de Pagu (o primeiro foi Rudá, do casamento com Oswald de Andrade), talvez temendo ser complacente por razões afetivas, economizou elogios em sua apresentação do livro; além de mulher fascinante, a autora do primeiro romance brasileiro a tematizar a classe operária era uma ficcionista extremamente lúcida e original.

A narrativa tinha tudo para ser uma obra panfletária, mas tem poucas passagens nesse tom, e elas são logo obliteradas pelo realismo sem concessões praticado por Pagu. Seu narrador em terceira pessoa não hesita diante de descrições deprimentes, de uma cena de lesbianismo ou dos palavrões mais cabeludos. É que, antes de ser a militante comunista presa tantas vezes ao longo de sua curta vida (morreu de câncer aos 52 anos), a escritora era inteligentíssima, e, portanto, incapaz de se deixar capturar por amarras doutrinárias. Não por acaso, foi rotulada como trotskista pelo Partido Comunista, assim como seu personagem Alfredo Rocha, intelectual nascido muito rico e que se “proletariza” ao entrar para a militância esquerdista. Ele é indisfarçavelmente inspirado em Oswald de Andrade.

Funciona assim, a política radical: quem não reza por nenhuma cartilha despersonalizadora acaba sendo execrado tanto pela direita como pela esquerda. E Parque industrial apresenta boas razões para ambos os extremos, pois não idealiza os operários, como faria um Jorge Amado, e ao mesmo tempo expõe a miséria intelectual e moral da burguesia nos anos posteriores à quebra da bolsa de Nova York (1929). O resultado é uma obra de rara eficácia estética e atualidade crítica.

O que Pagu parece ter pretendido foi expor a luta de classes por meio de contrastes marcantes: de um lado, a miséria em que viviam os trabalhadores; de outro, a vida ociosa e fútil de uma burguesia incapaz de entender que estava em processo de falência. Na São Paulo do início do século XX, nada mais eficaz, para isso, do que representar o ambiente que circunda a “grande penitenciária social” dos estabelecimentos fabris concentrados no bairro do Brás. Logo nas primeiras páginas, começam a surgir os operários desesperados, mais do que insatisfeitos, com seus salários irrisórios e as penosas jornadas de trabalho. A autora “fala” pela boca da líder proletária Rosinha Lituana, prosélita da revolução comunista, em poucas passagens que seriam enfadonhas se os discursos fossem longos, mas o estilo de Pagu é ágil e cortante, em linha semelhante ao cubo-futurismo oswaldiano, só que sem o complicador da pontuação suprimida e das montagens imagéticas desconcertantes. O romance é de uma legibilidade que, ao mesmo tempo, surpreende e cativa.

Ajuda muito nessa legibilidade a composição esquemática, disposta num enredo fragmentário que se assemelha a um croqui. O narrador tem pressa, não se detém em detalhes e digressões. Os personagens vão aparecendo e representando seus papéis por meio de cenas rápidas e diálogos reduzidos ao mínimo; Pagu parece ter aprendido bastante com a linguagem de Alcântara Machado nos contos de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), inspirada em técnicas narrativas do cinema, porém sua estética é muito pessoal.

Os cenários de Parque industrial alternam-se entre dois núcleos: o operário e o burguês. No primeiro grupo, logo começam a ganhar concretude alguns dramas individuais. Destaca-se o de Corina, costureira seduzida por um filhinho de papai, que a engravida e foge à responsabilidade. Previsivelmente, a moça é expulsa de casa pelos pais, e sua situação piora muito quando ela cai na prostituição e, depois de dar à luz uma criança deformada, assassina-a, sendo, por isso, presa. Quanto ao deflorador, fica livre para prosseguir na carreira de conquistador barato. Não, não é Maria do Bairro: o tom da narração apenas tangencia o moralismo, mas escapa de tornar-se maniqueísta mesmo quando põe em cena, de modo propositadamente ligeiro, a ganância desabrida dos capitalistas.

No segundo grupo avulta a figura de Alfredo Rocha. Ele também engravida uma garota de condição modesta, mas casa-se com ela sob coação da autoridade policial. Havia disso na época, e Oswald transformou em piada, como fazia com tudo, ocorrência semelhante em seu romance Serafim Ponte Grande (1933). Também pelo uso compulsivo do humor, a integração de Alfredo ao Partido Comunista não dá certo: a piedade ideológica não convive bem com o que não seja extremamente sério, de preferência dramático. A rejeição de Alfredo pelos comunistas leva Otávia, a líder operária que se apaixonara pelo burguês arrependido, a fazer sua “autocrítica” diante dos companheiros e a abandonar o namorado, acusado de ser um desagregador do movimento revolucionário.

É tão difícil resumir o já muito enxuto enredo de Parque industrial quanto citar trechos do livro, pois todos são importantes para a economia do relato; nada está sobrando. Mesmo assim, tentemos exemplificar o estilo da autora com estes dois trechos, o primeiro descrevendo os efeitos da crise econômica sobre a burguesia paulistana e o segundo esquematizando as limitações culturais que tornavam difícil politizar o operário brasileiro:

Automóvel Clube. Dentro, moscas. O clube da alta pede penico pela pena decadente de seus criados da imprensa. Agora quer engazopar a prefeitura, vendendo-lhe o prédio que não pode terminar. É a crise. O capitalismo nascente de São Paulo estica as canelas feudais e peludas. (Página 69 da reedição lançada este ano pela Companhia das Letras)

A casa de Alexandre fica perto do parque São Jorge. Ele diz que é casa. Os vizinhos burgueses, galinheiro. Os seus dois crioulinhos, de nove e dez anos, não se batizaram mas se chamam Carlos Marx e Frederico Engels. Marcos e Enguis, como fala da cama suja a avó paralítica. Do colchão murcho, feito de retalhos, ela olha ferver a sopa num fogão de gravetos. (Página 93)

O líder operário Alexandre é morto pela polícia durante a manifestação grevista que lidera – possível aproveitamento de um episódio da vida da autora, que realmente tentou socorrer um trabalhador assassinado em condições análogas. Aí, uma nota que soa ao mesmo tempo ideologicamente edificante e irônica: Alexandre declara, nos estertores da morte, que “matam os operários, mas o proletariado não morre”.

A ironia soa como desesperança, mas o desfecho do romance é aberto. Apenas podemos imaginar o que farão de suas vidas Otávia, Alfredo e Corina. Esta reaparece no último capítulo, intitulado “Reserva industrial”, liberta da prisão e de volta à vida de prostituta, mas “confraternizado” na cama com Pepe, antigo conhecido do bairro operário, ambos “atirados à mesma margem das combinações capitalistas”.

Para um leitor atual e não versado na história do movimento esquerdista no Brasil, talvez a problemática desenhada no refinadíssimo croqui de Patrícia Galvão – ela poderia haver dito, como seu companheiro Oswald, que “o povo ainda comerá do biscoito fino que fabrico” – soe um tanto longínqua. É que o capitalismo tardio (passe a expressão esperançada de Fredric Jameson) desenvolveu matizes sutilíssimos e inumeráveis, a despeito das recentes tentativas de certa elite brasileira de fazê-lo regredir para sempre ao estádio da acumulação primitiva. Talvez, visto à luz dessa complexidade, Parque industrial pareça a muitos mais esquemático do que realmente é.

 

Título: Parque Industrial
Autora: Patrícia Galvão (Pagu)
Gênero: Ficção Literária
Ano da edição:1932
ISBN-10: 6559212610
ISBN-13: 978-6559212613
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.