O coração das trevas segundo Ana Miranda

Quando ainda se aprende algo de literatura no ensino médio, são em geral vagas noções de forma e estilo subordinadas a informações superficiais sobre períodos históricos. No caso do Barroco, época na qual radica nada menos que a energia problematizadora de que surge a arte moderna, a dificuldade dos textos se soma à distância oceânica do que hoje passa por pensamento em relação ao espírito da Contra-Reforma (aqui se recusa a horrível ortografia vigente) e à situação do Brasil, no início do século XVII, como possessão espanhola – até 1640, quando se encerra o período conhecido como “união das coroas ibéricas”.

O padrão de ensino referido ainda piorou com a entrega do ENEM aos semiletrados que pululam entre os auxiliares que a burocracia do MEC – “dinastia de atrapalhadores”, na certeira expressão de Cláudio Moura Castro, pois até privatistas empedernidos dizem frases corretas – recruta e, mais ainda, com a miseranda BNCC (Base Nacional Curricular Comum). É por isso que um livro como Desmundo (1996), de Ana Miranda, pode significar a oportunidade de uma entrada diferente, mais lúcida, no estudo do Barroco.

É verdade que a linguagem do romance é ainda mais arrevesada que a de muitos poemas seiscentistas, mas ele tem, por exemplo, a vantagem de colocar no centro da ação um tema muito caro aos debates atuais: a condição feminina. A narradora é Oribela, menina que chega ao Brasil num navio, em meados do século XVI, fazendo parte de um lote de órfãs enviadas pela rainha regente da época, D. Catarina de Áustria (avó de D. Sebastião), para se casarem com colonos e proporcionarem a Portugal – cujo trono seria anexado ao da Espanha em 1580 – casamentos cristãos em vez da inevitável, na falta de mulheres brancas, promiscuidade com indígenas “pagãs”. Além das qualidades do romance, ainda existe a opção de entrar no tema por meio do ótimo filme nele baseado, que teve a direção de Alain Fresnot, cineasta francês radicado no Brasil.

Oribela narra suas desventuras começando pela chegada ao Brasil, duas vezes mencionado como “desmundo” em razão da ausência total da vida civilizada a que ela se acostumara na Corte. Afinal, um dia tivera uma mãe, que faleceu primeiro, e um pai que a infernizava com maldições misóginas de todo tipo. Quando a rainha resolveu mandar órfãs para a colônia, isso deveria ser encarado pelas meninas como suprema ventura, pois sairiam do desamparo para encontrar proteção e amparo material. Ocorre que a narradora, menos (ou mais?) do que feminista avant la lettre, era um espírito inquieto e difícil de domar. Seu primeiro ato na condição de mercadoria casamentícia é cuspir no rosto de um pretendente. Nem era a única; D. Bernardinha, sua companheira de infortúnio, termina assassinando o honrado marido “cristão” que a prostituía.

A protagonista tem a relativa sorte de cair nas graças de Francisco de Albuquerque, um colono que destoava do esboço de civilização local pelo menos num aspecto: apaixonou-se pela mocinha e procurou dar a ela o que imaginava como vida de princesa. Ocorre que o “palácio” era, na visão de Oribela, pouco mais do que uma pocilga cheia de animais estranhos e serviçais falando uma língua incompreensível. O maior mal de que ela sofre é a solidão, a incapacidade de compreender a simples existência do “desmundo”.

Por falar em língua, a escrita de Ana Miranda nesse livro é elaborada por meio de uma técnica em que o estilo dos cronistas viajantes é a matriz de que derivam passagens de sintaxe e vocabulário arcaicos, mas que recebem com frequência a visita da poesia. Às vezes se torna um pouco monótona, mas a riqueza de seu colorido é inegável e resulta de uma extensa pesquisa. Ana Miranda, desde seu romance de estreia, Boca do Inferno (1989), optou pela ficção histórica, e, no caso de Desmundo, a lista de fontes colocada no final do livro atesta seu grande esforço em plasmar um simulacro verossímil da língua que devia ser possível a uma portuguesa educada em convento e que caísse em pleno “coração das trevas” (chegamos a nos lembrar do romance de Conrad) da sociedade colonial. Se esse estilo tem um defeito, é a idealização de Oribela como tão dotada intelectualmente a ponto de falar essa língua fundida na erudição amealhada pela própria escritora no processo de elaboração do livro.

O desmundo é mais propriamente a fazenda de Francisco de Albuquerque, o marido que era sobrinho da filha do governador da Bahia – lembremos que essa cidade, hoje chamada Salvador, era a capital da colônia. Mais do que o arremedo de cidade portuária onde se davam as “veniagas” do incipiente comércio ultramarino, essa propriedade representava a distância irremediável de tudo o que lembrasse a civilização. Dali tenta fugir Oribela a primeira vez, sendo recapturada e amarrada pelo marido à cama.

Na segunda tentativa de fuga, ela se aproveita de um ataque de indígenas à fazenda, os quais incendeiam o curral e despojam Francisco de seu gado, além de matarem muita gente. A moça furta um cavalo e acaba perdida na selva, sendo socorrida pelo mouro Ximeno Dias, de quem se torna amante depois de muito tergiversar a respeito do que significava confiar num muçulmano. A mentalidade religiosa cheia de contradições da protagonista é um dos elementos inegavelmente barrocos do livro, além da linguagem em seus cumes (breves, é verdade) poéticos.

Francisco não se conforma com a perda de sua mulher. Por estranho que pareça, ele não ama Oribela apenas como posse ou receptáculo de sua descendência: existe algo de comoventemente humano nesse troglodita. Ocorre que desta vez a moça já chega ao lar grávida, e a desconfiança de que o pai da criança seja o mouro faz a mãe de Francisco insinuar a ele tal possibilidade, ela que sempre havia hostilizado a nora. Disso resulta ser D. Branca de Albuquerque esfaqueada e morta pelo filho. Uma ambiguidade, entre muitas, paira sobre o enredo: seria Viliganda, a irmã deficiente mental de Francisco, resultado de um conúbio pecaminoso entre filho e mãe?

Poucas semanas depois de nascido o menino, seus cabelos ruivos confirmam que Ximeno era o pai, e precipita-se um desfecho duvidoso em que Oribela, abandonada na fazenda por Francisco, ao mesmo tempo se sente desamparada e deseja que ele volte, até para recuperar o filho, e se “lembra” de Ximeno como verdadeiro amor, pois antes renegara o mouro denunciando-o como culpado de oferecer-lhe abrigo depois da fuga. A cena final leva a dúvida ao extremo: estaria mesmo Ximeno chegando de volta com a criança ou a narradora delira? É um tópico interessante de discussão, se o excesso de lacunas narrativas, de que tal desfecho funciona como epítome, seria um perseguido efeito de estilo ou uma debilidade resultante da fadiga de lidar com tão superabundante material poético-narrativo.

Título: Desmundo
Autora: Ana Miranda
Gênero: Romance
Ano da edição: 1996
ISBN: 9788571645660
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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