Violência escolar e bullying

Débora Felício Faria
Carla Helena Fernandes
Sylvia da Silveira Nunes

 

A violência presente nas escolas é uma realidade cujo enfrentamento exige, inicialmente, admiti-la. Enquanto agressões forem vistas como brincadeiras, mesmo que de ‘mau gosto’ ou ‘coisas de crianças’, continuaremos a conviver com suas consequências gravíssimas.

Cabe-nos, portanto, defini-la.  De acordo com o Relatório mundial sobre violência e saúde (KRUG, 2002), produzido pela Organização Mundial de Saúde, a violência significa:


O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Percebe-se que este conceito considera diferentes formas de manifestação da violência, seja dirigida ao outro ou auto infligida e, tendo em vista suas consequências, é caracterizada como um problema mundial de saúde pública. Na intersecção entre violência e escola, inclui-se a especificidade de seus alvos e agressores: os estudantes, professores ou funcionários da escola. (UNESCO, 2019). A luz deste conceito, a ONG Plan International estima que, anualmente, ao menos 246 milhões de crianças e adolescentes sofrem violência escolar, que vão desde xingamentos e brigas até o abuso sexual e ataques com armas (UNESCO, 2019).

Reconhecendo a seriedade do tema, nas últimas décadas diversos pesquisadores e pesquisadoras brasileiras, como Abramovay e Rua (2002); Fante (2005); Crochík (2011; 2013; 2015) e internacionais, a exemplo de Dan Olweus (1973; 1994; 2013) – precursor dos estudos sobre violência escolar – Debarbieux e Blaya (2002) têm contribuído sobremaneira para a compreensão desse fenômeno, suas causas e como combatê-lo.  

Dentre as formas de manifestação da violência escolar está o bullying, objeto da pesquisa realizada no período de 2018 a 2020, denominada Violência Escolar: discriminação, bullying e responsabilidade, contemplada com recursos do CNPq, na chamada Cidadania, Violência e Direitos Humanos, que envolveu diversas instituições do Ensino Superior brasileiras – dentre as quais está a Unifal-MG – e estrangeiras, sob a coordenação do Prof. Dr. José Leon Crochík.

Admitindo a existência do bullying como violência escolar, alguns aspectos são basilares para a sua compreensão, a começar pela afirmação de que se trata de um fenômeno social, intimamente relacionado com a violência presente na sociedade e, portanto, existem fatores que contribuem para sua prevalência e não situações individualizadas.

Em geral as pessoas associam o bullying a questões como desestrutura familiar, falta de controle e autoridade dos pais ou professores e até problemas psicológicos por parte de seus autores. Mas é preciso entender que a agressividade é um componente humano e o processo de socialização deveria nos ajudar a racionalizá-la e a substituir as reações destrutivas por atitudes conscientes, esclarecidas, nosso velho amigo Freud (1975) já nos alertou para isso. Todavia, no atual estágio civilizatório no qual nos encontramos é possível dizer que a cultura não tem cumprido esse papel. Ela tem se imposto tão duramente aos indivíduos que acaba por propiciá-las, ao exigir de cada um de nós uma padronização no modo de ser e de estar no mundo, aprisionando-nos ao campo da adaptação plena e a liberdade não pode ser anunciada (ADORNO, 2020). Em companhia de Freud (1975), Marcuse (1981), Adorno (2020) e, por meio de nossos estudos podemos afirmar que quanto mais violenta e dura é a estrutura social, mais respostas agressivas vai exigir de seus membros. O impulso de autopreservação é acionado.

Por isso, sem negar os fatores anteriormente apresentados, queremos dar destaque àqueles que estão associados à consolidação de uma sociedade dividida em fortes e fracos, superiores e inferiores, capazes e incapazes, ou seja, na hierarquização social. Essa divisão construída socialmente intensifica atitudes individualistas e autocentradas ao invés de proporcionar a solidariedade e a empatia, promove relações de competição e rivalidade em oposição às práticas de colaboração e compartilhamento, estimula o desejo de dominação de uns sobre os outros, vistos como adversários entre si e impede que as crianças e jovens se desenvolvam em interação mútua e expressem suas diferenças autonomamente.

Assim, o bullying é um tipo de violência que tem características muito próprias, quer dizer, para que uma determinada agressão seja identificada como bullying é preciso que seja um comportamento intencional, repetitivo ou que tenha potencial para tal, que ocorra numa relação entre pares, entre estudantes, por exemplo, e que exista uma relação desproporcional de poder, seja ela real ou imaginária. A agressão, em geral, é direcionada a uma criança ou jovem, que, em razão dessa percepção desproporcional de poder, se sente impossibilitada de autodefesa. Essa relação retroalimenta novos episódios de violência e o transforma em um padrão repetitivo.

As agressões podem ocorrer dentro da sala de aula ou fora dela, nos banheiros, corredores da escola, no caminho de volta para casa e, atualmente, no mundo virtual. Com o grande alcance da internet, um outro tipo de violência, derivada do bullying tem ganhado grande repercussão: o cyberbullying. Nesses casos, as crianças e jovens são hostilizadas, atacadas, depreciadas e até ameaçadas virtualmente.

O cyberbullying não tem o limite espacial e temporal da escola. Pode acontecer a qualquer hora do dia, por diferentes formatos, como postagens de fotos, vídeos, textos e com o potencial de atingir um número imenso de visualizações. Além disso, o autor permanece anônimo, na maioria dos casos.

O Bullying pode afetar estudantes de diversas maneiras

 O bullying é devastador e, de acordo com dados apresentados pela Unesco, no documento Violência escolar e bullying: relatório sobre a situação mundial, indicam que esse “[…] é o tipo de violência mais comum nas escolas.” (UNESCO, 2019). Resulta dessa prática, a baixa autoestima, queda no desempenho escolar, o medo de ir para escola (as crianças criam doenças para faltar a aula), até a evasão escolar, depressão, a violência auto infligida, ideação suicida e suicídio, o sentimento de vingança, materializado, nos casos extremos, pelos assassinatos em massa, amplamente divulgados pela mídia, são alguns exemplos. Mas não só as vítimas do bullying são afetadas, o ambiente violento e o clima de insegurança na escola geram um mal-estar em todos.

Foi o caso do suicídio de três adolescentes que chocou a Noruega e o mundo, na década de 1970 e impulsionou os estudos do professor Dan Olweus sobre bullying. E em 2011, em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, o psiquiatra Timothy Brewerton falou sobre os assassinatos em massa, como os casos da Escola de Columbine, em 1999 e a Universidade Estadual da Virgínia, em 2007, nos Estados Unidos, assim como no Brasil, os casos da Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, em 2011, da Escola Estadual Professor Raul Brasil, em 2019 e, recentemente o caso de Escola Estadual Thomazia Montoro, ambas em São Paulo. Para o psiquiatra não há um fator isolado para a ocorrência desses casos. “É um padrão multifatorial, que leva em conta aspectos biológicos, familiares, sociais e culturais. Mas o bullying é um denominador comum.” (FOLHA, 2011)

Portanto estamos falando de um fenômeno social da maior seriedade, não estamos falando de um fenômeno isolado ou de brincadeiras de crianças!

O papel das escolas e do poder público

As escolas têm um papel fundamental tanto para combater o bullying ou, do contrário, para sua manutenção, a diferença está na forma como a escola lida com este fenômeno e os fatores que os geram. A adoção de medidas individualizadas ou coercitivas fragilizam seu potencial transformador, porque atuam apenas em situações específicas e quando são identificadas. O que nem sempre ocorre.

A compreensão de que a escola precisa adotar medidas de controle o tempo todo, senão ‘sai dos trilhos’, contribui enormemente para a formação de crianças e adolescentes heterônomos, quer dizer, que são educados para obedecer e a cumprir regras, ou, num ato de rebeldia extrema, negá-las por completo. Resultam desse processo, jovens que só sabem agir sob comando externo, sua consciência moral é frágil. Daí a relevância de formar nossos estudantes para a autonomia e não para a tutela, o que implica restituí-las ao lugar de sujeitos de direitos, já anunciado desde 1990 com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990) e ensiná-los que existe responsabilidade nas escolhas e que atos possuem consequências, que o pensamento que segue irrefletidamente o todo não é regra, que é possível pensar diferente, é isso que caracteriza o pensamento autônomo.

O que nos marcou muito na pesquisa realizada foi o fato das crianças e adolescentes relatarem situações de bullying vividas e praticadas, quando os profissionais das escolas não as percebem ou as negam. E essa é outra característica do bullying. É uma violência quase sempre invisível e muitas vezes ignorada pela equipe de profissionais da escola. O silenciamento da vítima, que, sob ameaça e coação, não procura os adultos ou mesmo um colega para falar, é um fator importante. Outro fator determinante para a invisibilização do bullying é o entendimento equivocado de que esse padrão de comportamento agressivo faz parte da etapa de desenvolvimento e amadurecimento dos estudantes, que são brincadeiras de mau gosto e que logo vão ser superadas. Nós não podemos naturalizar este comportamento, muito menos aquelas ideias que o estimulam e o mantêm. 

É preciso criar uma cultura escolar acolhedora, que valorize as diferenças e que promova o sentimento de pertencimento e segurança nas crianças. Um espaço de formação que promova o pensamento crítico sobre os padrões de normalidade e não a adesão plena a eles. Que problematize a estrutura social, marcadamente hierarquizada.

Observamos uma grande lacuna na formação dos professores e professoras sobre este fenômeno e os processos formativos que lhes dão origem. Portanto, as instituições escolares, sejam públicas ou privadas, que se mobilizam no sentido de construir um plano escolar de enfrentamento às diversas formas de violência tendem a criar um clima menos favorável à sua prática. Ações como formação dos profissionais que nelas atuam, reconhecimento do protagonismo das crianças e jovens, enfrentamento aos estereótipos construídos sobre gênero, capacidade física, intelectual e sensorial, raça e etnia, geração, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, dentro outros, além de protocolos de comunicação e informação para as ocorrências, de apoio e suporte, campanhas, pesquisas são medidas com resultados significativos (UNESCO, 2019).

Além disso, o Estado tem uma contribuição crucial ao inserir a violência escolar como pauta das políticas públicas, o que resultou na Lei nº 13.185, aprovada em 2016, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) em todo o território nacional e a Lei nº 13.663 de 2018 que altera o art. 12 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir a promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz entre as incumbências dos estabelecimentos de ensino.

E, mais recentemente, a Lei nº 14.164 de 2021, inclui o tema da violência contra a mulher nos currículos escolares e cria a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher em instituições públicas e particulares da educação básica.

Mas é preciso fazer mais. Ainda temos um longo caminho pela frente.