Indignação

Francisco Xarão

Indignação é um tipo de emoção secundária. As emoções secundárias têm origem nas seis emoções primárias ou básicas: alegria, tristeza, medo, surpresa, raiva e nojo. Essas são denominadas primárias ou básicas por que são expressões comuns à toda espécie humana e algumas delas podem ser também observadas em outras espécies animais (DARWIN, [1872], 2009). Diferente das emoções primárias, a expressão das emoções secundárias depende de cada cultura e comportamentos sociais tolerados.

O sentimento de indignação manifesta-se social e culturalmente como uma reação espontânea contrária àquilo que o indignado considera inaceitável em relação à sua dignidade, a de outra pessoa ou grupo social. Fenomenologicamente, a expressão emocional da indignação aparece concomitante com a manifestação da emoção primária da raiva. Em alguns casos, inclusive, a raiva se manifesta como uma indignação simulada. Em outros casos uma indignação autêntica é confundida com uma explosão de pura raiva.

A característica principal do sentimento de indignação é a repulsa à violação de normas de conduta socialmente aceitas como justas. Em consequência disso, o objeto que causa indignação varia de uma sociedade para outra e de uma época para outra, pois depende do que o senso comum considera bom ou ruim.

O desgosto provocado pela indignação produz um estado emocional de agitação física e mental. O indignado torna-se sensível a qualquer crítica e intolerante em relação à atitude, gesto ou pessoa que originou a indignação. É desassossegado. Ele grita. Denuncia. Torna-se intransigente. Pode, por vezes, praticar atos violentos, como quebrar objetos que julga serem relacionados ao que provoca sua indignação. Em outras ocasiões desaba em pranto desesperado por sentir-se impotente para reverter a situação injusta que provocou a indignação.

O indignado sofre a dor alheia ao testemunhar uma outra pessoa lograr êxito ao aproveitar-se de uma situação difícil para obter vantagens para si ou se apropriar do que, por mérito, não lhe pertence. A agrura do indignado aparece sobretudo quando o governante, que deveria zelar pelo bem público, cuida somente de seus interesses privados. Essa característica do sentimento de indignação a tornou uma das emoções mobilizadoras para produzir mudanças políticas e sociais.

Aristóteles (384-322 a.C.), na Retórica (1386b-1387a, 2005), descreve a indignação como o sentimento oposto à piedade. E na Ética a Nicômaco (1108b, 1992) apresenta a indignação justa (nêmesis) como uma virtude, um meio-termo entre a inveja e o despeito. O invejoso sofre com o sucesso alheio enquanto o despeitado ou malévolo se alegra com a desgraça dos outros. Já “a pessoa caracterizada pela indignação justa sofre em face do sucesso imerecido de alguém (1108b)”. A indignação, desde os sofistas, cumpre um papel preponderante na persuasão do público. Aristóteles reconhece que “as emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer (1378a, p. 160)”. Portanto, se o orador provocar indignação do público acerca de determinada opinião terá mais chances de reprová-la.

Santo Agostinho, segundo Anselmo de Cantuária (BOESAK, 2014, p. 43), considera que “a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”. O indignado é sempre um esperançoso, porque aquele que nada espera não tem motivo para se decepcionar. A fonte de toda a indignação parece ser a frustação em relação ao não reconhecimento da dignidade humana. O usurpador sempre tenta convencer o usurpado que a indignação é inútil, porque “as coisas são assim”. Porém, como já disse o poeta: “são tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto. (ANDRADE, 2000, p. 29).”

Santo Tomás de Aquino associa a definição de dignitas à ideia do homem criado à imagem e semelhança de Deus. Em face disso, toda a pessoa humana é digna da sua personalidade, porque o que pertence ao pai por absoluto, pertence ao filho relativamente. No entanto, a dignitas de cada indivíduo, submetido desde o pecado original às vicissitudes da condição mundana de sua existência, está para além da imagem e semelhança ao seu criador, na sua ligação com ele. O homem livre, pelo uso da própria razão, confirma por si a dignidade humana quando dirige sua vida na estrita obediência dos deveres da lei divina, já inscrita na alma dele (IRIZAR; CASTRO, 2013, p. 140 et seq.). Como explica Agamben (2005, p. 67 et seq.), o termo tem origem jurídica e só mais tarde ingressou no vocabulário moral e político. Na origem, dignitas se dizia de distinção ou honraria conferida a alguém investido em cargo público.

Em Espinosa descobrimos o relevante papel que cumpre a indignação na destruição das tiranias. No Tratado político ([1677], 2009), ele explica que a multidão, por livre consentimento, transfere ao Estado o direito de julgar o que cada um faz e a exigir o respeito à lei. Todavia, o limite do pacto é que a cidade (Estado) julgue e execute às leis sempre em proveito do bem-estar e segurança de todos os cidadãos. Também a cidade (Estado) está submetida ao contrato, isto é, à lei. Portanto, ainda que os cidadãos estejam sob a jurisdição do Estado, isto não implica, por certo, assevera Espinosa (2009, p. 39), “[…] que os homens percam a natureza humana e adquiram uma outra, nem que a cidade tenha o direito de fazer com que os homens voem ou, o que é igualmente impossível, que os homens olhem como honroso o que provoca riso ou náusea”. Desse modo, se o soberano exige dos cidadãos mais do que a lei civil alcança ou a dignidade humana suporta, ele dissolve a base do contrato. Nessas ocasiões, admite Espinosa (2009, p. 40), a cidade (Estado) só pode ser defendida pelo direito de guerra evocado pelos cidadãos contra o tirano usurpador. Como esclarece Matheron (2011), o medo da tirania sentido individualmente por cada cidadão não provoca nenhum abalo no regime. A indignação solitária é estéril. Porém, se ela se transforma em indignação social, ou o soberano retorna ao contrato e faz cumprir a lei ou ele é substituído pela fúria das multidões.

Castells (2013) prefere ver na indignação social a possibilidade da mudança do estado atual das coisas por uma “sociedade em rede”. Ele aponta para a prática dos diversos novos movimentos sociais em rede como um exemplo desta utopia viável. Ele acredita que o legado destes novos movimentos da era da Internet foi propor um projeto coletivo, um sonho possível, que é reinventar a democracia.

Ao catalogar as revoltas populares no período 2011-2013 (Indignados na Espanha, Portugal, Grécia e Itália, Ocupe Wall Street, Primavera Árabe, Junho 2013 no Brasil), Estanque e Fonseca (2014, p. 591) falam de “ondas de indignação” que foram dirigidas “contra o sistema e suas instituições, que não levavam em conta os interesses dos cidadãos”.

 Santos (2015), partindo da análise do mesmo cenário de indignação mundial do período 2011-2013, reforça o aspecto da esperança dos indignados. Ainda que em todos os protestos domine a negatividade, isto é, a afirmação radical do que os indignados não querem, é certo que fazem isso à espera de dias melhores. E ele também aponta, como Castells (2013), que a prática desses novos movimentos permite sonhar com um “outro mundo possível”. (SANTOS, 2015, p. 21).”

Entretanto, estudos mais recentes (INNERARITY, 2017; TUCKER, 2018; SUTTER, 2019) têm observado que a indignação social, simulada e fingida, alimentada, sobretudo, por redes sociais e mídias empresariais mais interessadas nos escândalos que rendem muitos clicks de “likes” do que no destino real das pessoas, está pondo em risco a existência da própria democracia. A indignação total, como explica Sutter (2019), se expressa socialmente como uma revolta permanente contra tudo e todos e como avessa ao diálogo. Sua face mais assustadora é a intolerância. Cada indivíduo acredita estar certo e o resto do mundo errado. Innerarity (2017, p. 130) lembra que “[…] a crise da democracia não é uma fase transitória, e sim uma situação permanente, porque é um sistema aberto”. Essa característica expõe o regime democrático ao ataque dos oportunistas demagógicos e tiranos fascistas que manipulam política e ideologicamente a indignação social autêntica contra um fato concreto para transformá-la em um ressentimento total contra a política e a democracia em si mesma.  

O único antídoto que a democracia parece dispor para evitar a ascensão de líderes demagógicos oportunistas e antidemocratas é a educação política dos cidadãos. Uma legítima democracia faz de cada indignação social espontânea e sincera um momento de aprendizado para melhorar enquanto sociedade democrática, cultivando os valores da tolerância, do diálogo, do aprendizado permanente sobre a cultura da paz e dos direitos humanos.

No caso brasileiro, como vaticinou Paulo Freire (2000, p. 31):

Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humaniza-lo, torna-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, in-viabilizando [sic] o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Lo que queda de Auschwitz: El archivo y el testigo, homo sacer III. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. 2. ed., Valência: Pre-textos, 2005.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. e Notas: Mário da Gama Cury. 3. ed. Brasília: EdUNB, 1992.

ARISTÓTELES. Obras Completas. Coord.: António Pedro Mesquita. V. VIII, Tomo I: Retórica. Trad. e notas de Manuel Alexandre Júnior; Paulo Farmhouse Alberto; Abel do Nascimento Pena. 2. ed. Rev. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa; Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

BOESAK, Allan Aubrey. Dare We Speak of Hope? Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2014.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. Trad. Leon de Souza Lobo Garcia. São  Paulo: Cia das Letras, 2009.

ESPINOSA, Baruch de. Tratado político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

ESTANQUE, Elísio; FONSECA, Dora. Olas de indignación y su lógica política: movimientos sociales y nuevas expresiones de radicalismo de clase media. Revista de Sociología de la Educación-RASE, v. 7, n. 3, p. 587-607, 2014. Disponível em: https://ojs.uv.es/index.php/RASE/article/view/8744/8287

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Ed. póstuma por Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: EdUnesp, 2000.

INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: a frustração popular e o risco para a democracia. Trad. João Pedro George. Lisboa: LeYa, 2017.

IRIZAR, Liliana; CASTRO, Santiago. El ser, la forma y la persona: sobre la raíz ontológica de la dignidad humana en Tomás de Aquino. Revista Lasallista de Investigación, Caldas, v. 10, n. 2, p. 128-150, Dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-44492013000200014&lng=en&nrm=iso

MATHERON, Alexandre. Qu’est-ce que l’indignation?, Multitudes, 2011/3 (n° 46), p. 24-25. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-multitudes-2011-3-page-24.htm

SANTOS, Boaventura de Sousa. Las revueltas mundiales de indignación: su significado para la teoría y para la prática. In: RODRIGUES, José Luís Exeni (Org.). Revueltas de Indignación y otras conversas. Proyecto Alice. La Paz: Stigma, 2015.

SUTTER, Laurent de. Indignation totale: Ce que notre addiction au scandale dit de nous. Paris: Éditions de l’Observatoire, 2019.

TUCKER, Ericka. Hope, hate and indignation: Spinoza and political emotion in the Trump Era. In: SABLE, Marc Benjamin; TORRES, Angel Jaramillo (Eds.). Trump and Political Philosophy: patriotism, cosmopolitanism and civic virtue. Cham: Palgrave Macmillan, 2018. p. 131-157. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-319-74427-8_8

Publicado originalmente em:

XARAO, Francisco. INDIGNAÇÃO. In: NODARI, Paulo César; SÍVERES, Luiz. (Org.). Dicionário de Cultura de Paz. Curitiba: CRV, 2021, v. 2, p. 39-43.