Felicidade retroativa

Apesar de ser um livro de memórias, Feliz ano velho (1982) cabe, em termos, na definição de romance-reportagem, um tipo de livro muito comum naquela época. Grande sucesso de vendas, projetou Marcelo Rubens Paiva como escritor aos 22 anos, por meio de uma fórmula em que o estilo narrativo ágil se solda à tragédia do rapaz tornado paralítico por um acidente e ao protesto contra a ditadura militar. O pai do autor, deputado federal pelo PTB de João Goulart na época do golpe de 1964, foi um dos muitos “desaparecidos” que o regime produziu.

Marcelo era estudante de engenharia agrícola na UNICAMP quando, ao mergulhar numa lagoa, bateu a cabeça e fraturou a quinta vértebra da coluna cervical. O livro é o relato romanceado de seu lento processo de recuperação ao longo de um ano, entremeando lembranças da vida anterior ao acidente, marcada por um jeito de ser meio hippie, então bastante em voga entre estudantes universitários. Não é mencionado, mas um dado importante do enredo é o fato de o narrador ser o último a perceber a gravidade de seu estado.

Ele entra direto, já nas primeiras linhas, na cena do salto que ocasionou sua lesão. A partir daí, rememora os primeiros cuidados, prestados por amigos, e depois, com alguma riqueza de detalhes, as duas temporadas que viveu em hospitais, primeiro em Campinas e depois em São Paulo, onde morava sua família. A linguagem é coloquial, incluindo muita gíria e vocabulário chulo (contrabalançados por certa pieguice), além de ingredientes que hoje tendem a colocar Marcelo no Index do politicamente “correto”, pois não será difícil caracterizá-lo como preconceituoso contra pretos, obesos e idosos. Marcelo parece especialmente ingrato com a avó e com sua segunda cuidadora, “a imbecil da Stella”, cuja imbecilidade consistia, pelo visto, em ser uma profissional diligente.

Não por acaso, a leitura mais importante do autor nessa temporada hospitalar foi O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira; mas, diferentemente do jornalista mineiro, ele é um tanto autocomplacente, embora capaz de autoironia em meio à revolta contra o destino de “mergulhador idiota”. Lido hoje, o livro talvez tenha seu maior valor como documento sobre um tipo de vida estudantil cuja noção de liberdade sexual chega a soar comoventemente ingênua, tamanha a transformação ocorrida nos costumes da sociedade brasileira nas últimas décadas. A prejudicar sua validade como romance, a partir da metade do relato a agilidade inicial do estilo dá lugar à preocupação um pouco excessiva de descrever cenas de sexo, algumas das quais rivalizam com Júlia e Sabrina (aqueles livrinhos cripto-eróticos que ainda vendem muito nos sebos, valendo uma pesquisa sobre o tipo de público capaz de os consumir) em vulgaridade e estereotipagem. Incapaz de lirismo na sua tentativa de poetizar a prosa, o escritor inventa expressões como “pelinhos bem formados” (qual seria o contrário disso?) e “jogar línguas” uma contra a outra (isso é, beijar com fúria).

Desfila pelo relato um número razoável de personagens, todos ligados ao drama do narrador. Entre eles figuram políticos importantes da esquerda brasileira no processo de redemocratização, como Leonel Brizola e Eduardo Suplicy. Aos episódios relacionados à luta de Marcelo contra a paralisia, também se intercalam passagens que retratam, mesmo de modo ligeiro, um tempo em que a principal forma de engajamento dos jovens de classe média contra a ditadura – tendo já sido esmagados pelo aparelho repressor os movimentos de guerrilha – era a música popular, o que diz muito sobre a posterior alienação musical da mesma faixa etária. Antes do acidente, o filho de Rubens Paiva havia sido compositor de canções para festivais e militante pioneiro do PT, por isso fazendo parte de suas lembranças o surgimento do partido no final dos anos 1970, quando o atual presidente da República brasileira liderava greves de metalúrgicos e era visto pela esquerda radical como “pelego”, enquanto a direita o considerava moderado em relação aos opositores mais diretos do establishment político, representado pela dinastia de generais-presidentes que durou mais de duas décadas.

Quando Marcelo compra uma cadeira de rodas mais leve que a primeira, conquistando a liberdade de movimentar-se com relativa autonomia por meio dela, sua recuperação passa a ser mais rápida e o romance se encaminha para o desfecho. Muito determinante para isso é a entrada em cena de uma terapeuta ocupacional, cujas iniciativas dão novo impulso ao tratamento. Antes de fechar sua história, porém, o narrador relata de modo muito incompleto e um tanto confuso sua tentativa de suicídio. Bem que, provocado pelo editor Caio Graco Prado a escrever um livro contando sua saga, avisara-o “do meu analfabetismo”. O parco domínio do idioma (apanágio de vários outros autores de sucesso na época, é justo dizer) não impediu a estrondosa vendagem de Feliz ano velho, cuja última cena retorna à inicial, aquela do mergulho que causa todo o drama. Quanto ao trocadilho do título: tendo ocorrido o acidente na véspera do ano novo, o autor considerou que só podia recordar um passado em que a felicidade era possível, não mais desejá-la para o futuro. Um grande achado, que muito terá contribuído para a carreira vitoriosa do livro.

Título: Feliz Ano Velho
Autor: Marcelo Rubens Paiva
Gênero: Romance
Ano da edição: 2015
ISBN: 8579624193
Selo: Alfaguara

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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