Com reflexos observados no cenário político e social brasileiro até os dias atuais, as “Jornadas de 2013” marcaram uma série de protestos desencadeados por um aumento nas tarifas do transporte público em São Paulo, que evoluíram para manifestações em várias outras cidades do país. Os atos evidenciaram revolta com a corrupção, com gastos excessivos com a Copa do Mundo de 2014 e com a falta de serviços públicos de qualidade, motivando conflitos violentos entre manifestantes e a polícia.
Para compreender o impacto da mobilização popular na história do país ao longo desses 10 anos, a equipe de comunicação conversou com o sociólogo Luís Antonio Groppo, professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UNIFAL-MG. O professor é especialista em Sociologia da Juventude e História dos Movimentos Estudantis, e desenvolve um projeto de pesquisa voltado para o tema “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: Formação e autoformação política das e dos ocupas”.
Confira a seguir a análise do pesquisador:
Quais foram os principais eventos e demandas que contribuíram para o movimento e a intensidade dos protestos durante as Jornadas de Junho de 2013?
“Temos preferido chamar o ciclo de protestos de Jornadas de 2013, sem o Junho. Ainda que junho tenha sido o momento mais importante deste ciclo, quando, a partir de São Paulo, protestos a partir de demandas em torno do transporte público se espalharam para todo o país, para além das capitais; em dado momento, os protestos se massificaram ainda mais e outras demandas, em geral difusas e ambíguas, se somaram.”
Prof. Luis Antonio Groppo: Foram muito importantes nas Jornadas os protestos contra o aumento da tarifa dos transportes públicos em São Paulo, capital, em junho, convocados pelo Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP). Entretanto, nossa pesquisa tem conhecido melhor o período que antecede a junho, que chamamos de latência, quando movimentos e organizações como o MPL de vários estados se organizaram, ao lado dos Comitês Populares da Copa (denunciando as violações dos direitos humanos pelas obras para os megaeventos esportivos, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016). Além disso, Porto Alegre-RS, já assistira em março de 2013 um bem-sucedido movimento contra o aumento das tarifas de ônibus organizado pelo Bloco de Lutas pelo Transporte Público de Porto Alegre. Após junho, os protestos continuam, e em lugares como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, na verdade, atingem o seu auge. Por isso temos preferido chamar o ciclo de protestos de Jornadas de 2013, sem o Junho. Ainda que junho tenha sido o momento mais importante deste ciclo, quando, a partir de São Paulo, protestos a partir de demandas em torno do transporte público se espalharam para todo o país, para além das capitais; em dado momento, os protestos se massificaram ainda mais e outras demandas, em geral difusas e ambíguas, se somaram. Após junho, a tendência foi a de protestos com pautas novamente progressistas e bem definidas, como greves defensivas em torno dos direitos trabalhistas, movimento por moradia e protestos contra a Copa e Olimpíadas.
Quais grupos sociais estiveram envolvidos nas manifestações? Houve algum padrão identificável em relação à composição dos manifestantes?
Prof. Luis Antonio Groppo: Os protestos tiveram em seu início uma marca estudantil e juvenil, com grande adesão de jovens de camadas populares, em geral mais escolarizadas que a geração de seus pais. Estes jovens foram identificados como jovens trabalhadores do precariado por Rui Braga. Movimentos como o MPL, entretanto, tinham importante presença de jovens de camadas médias, oriundos de famílias progressistas, com ensino superior completo em universidades públicas; o MPL-SP, por exemplo, foi muito bem-sucedido em seu trabalho de base em escolas públicas e cursinhos populares. Os protestos foram ganhando forte adesão popular e, em dado momento, outros grupos sociais, como estratos médios de tendências liberais e até conservadoras, foram às ruas. Segundo André Singer, no auge dos protestos paulistanos em junho, as ruas assistiram a um cruzamento de classes e ideologias. Após junho, os protestos voltaram a ser mais populares e progressistas. 2013 teve um recorde de greves de trabalhadores, em geral greves defensivas, como a garantia do pagamento do salário e de benefícios previstos em lei.
“Os protestos tiveram em seu início uma marca estudantil e juvenil, com grande adesão de jovens de camadas populares, em geral mais escolarizadas que a geração de seus pais.”
De que forma as redes sociais e a tecnologia impactaram na mobilização e organização do movimento?
Prof. Luis Antonio Groppo: A bibliografia, as entrevistas com pesquisadoras e pesquisadores das Jornadas, além das primeiras entrevistas com ativistas e militantes, têm ratificado a grande importância das redes sociais da Internet, especialmente o Facebook, assim como de novas tecnologias de informação e comunicação, como os aparelhos celulares, para o protesto. Não se tratava apenas do uso de novas mídias para se informar, mas também como forma dos movimentos mobilizarem as pessoas e até se organizar. As redes sociais foram muito importantes para os protestos contraporem sua versão dos eventos contra a narrativa do vandalismo encenada pelas mídias comerciais na fase inicial das Jornadas. Não havia ainda o algoritmo que fez do Facebook, mais tarde, uma bolha em torno de um pequeno grupo de seguidores; deste modo, as demandas das Jornadas, assim como os vídeos que demonstravam a violência policial desmedida, feitos por celulares dos manifestantes, tinham ampla circulação. Convocatórias feitas via “eventos” do Facebook, por exemplo, tinham enorme adesão, e, se não conseguiram sozinhas criar grandes eventos, foram relevantes para engrossar a adesão aos protestos convocados por coletivos como o MPL.
Qual foi a resposta do governo e das autoridades em relação aos protestos? Como essa resposta influenciou o desenvolvimento e a trajetória das Jornadas de 2013?
“A resposta foi de deslegitimar a pauta, não negociar e fazer uso da repressão policial. As mídias comerciais, por meio da televisão, jornais e revistas, reforçavam a resposta do governo, criando a narrativa de que os protestos eram vandalismo… A resposta, talvez inesperada, foi a da solidariedade da opinião pública.”
Prof. Luis Antonio Groppo: Em março de 2013, em Porto Alegre, liminar da Justiça gaúcha revogou o aumento das tarifas, dando vitória ao Bloco de Lutas. A capital paulista, assim como a fluminense, haviam suspenso o aumento das tarifas a pedido do governo federal, preocupado com a meta da inflação; quando chegou junho, o MPL e movimentos similares em outros locais, como os Tarifas Zero, haviam se preparado para chamar os protestos e tinham ainda os estudantes em aula, não em período de férias como acontecia nos aumentos no início do ano. Aí a resposta foi de deslegitimar a pauta, não negociar e fazer uso da repressão policial. As mídias comerciais, por meio da televisão, jornais e revistas, reforçavam a resposta do governo, criando a narrativa de que os protestos eram vandalismo. Mesmo assim, em São Paulo, Rio e outras capitais, os protestos cresciam. A resposta dos governos, inclusive com o conluio de Geraldo Alckmin, governador paulista, e Fernando Haddad, prefeito da capital paulista, foi a de aumentar a repressão. A resposta, talvez inesperada, foi a da solidariedade da opinião pública. Por outro lado, como visto, o público e as demandas dos protestos passaram a se diversificar. As mídias comerciais modificaram sua narrativa, agora separando os bons manifestantes (pacíficos, nacionalistas e críticos da corrupção) dos maus manifestantes (os que faziam uso da violência). Ao final, praticamente todos os governos locais tiveram de revogar os aumentos das tarifas: por um lado, reduzindo os lucros exorbitantes das empresas concessionárias e as arrecadações municipais; de outro, reduzindo o custo de vida dos trabalhadores, ainda que momentaneamente. O governo federal, de Dilma Rousseff, no auge dos protestos em junho, acenou com uma reforma das instituições políticas (sabotada por seu próprio vice-presidente, Michel Temer, e por setores do seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores – PT). Dilma ainda respondeu com a proposta do uso dos royalties do pré-sal para a educação (aprovada, mas incluindo também a saúde) e o programa Mais Médicos (também levado a efeito).
De que maneira as Jornadas de 2013 impactaram a percepção e o engajamento político dos brasileiros, especialmente entre os jovens?
Prof. Luis Antonio Groppo: Trata-se de um tema mais controverso e que nossa pesquisa está se debruçando. As Jornadas foram protestos mobilizados por coletivos de tendências autonomistas, como o MPL-SP, Bloco de Lutas, Assembleia Popular Horizontal de Porto Alegre e outros, ou então fora das estruturas partidárias e sindicais clássicas, como os Comitês Populares da Copa. Atraíram jovens estudantes de classes populares e médias para uma forma de participação política direta, não mediada por partidos, que implicava participação pessoal e ação direta. Em parte, a ida de setores médios mais conservadores às ruas, ao lado de movimentos de direita então em consolidação, como o Movimento Brasil Livre (MBL, que se aproveitou da semelhança com a sigla do autonomista MPL para ser seguido), construíram um discurso antipartidário (não apenas apartidário) e logo antipetista, tentando direcionar a energia dos protestos contra o governo federal do PT, com certo apoio das mídias comerciais – mas com sucesso relativo, ensaiando, entretanto, a estratégia que seria bem-sucedida em 2015 e 2016, nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Penso que, nos anos seguintes, a alternativa coletivista e autonomista de engajamento político juvenil, à esquerda, viveu seu auge (como nas ocupações secundaristas de 2015 e 2016, assim como o “Ele não!” em 2018), seguido por um rápido declínio, deixando com poucas alternativas esta unidade de geração progressista mobilizada a partir de 2013 – que precisaria apoiar os candidatos do PT nas eleições presidenciais de 2018 e 2022 para combater a ascensão da extrema-direita ao poder. Parte da geração juvenil, especialmente de setores médios e do gênero masculino, se deixou atrair pelas narrativas da extrema-direita, em torno da crítica à corrupção e à ineficiência do Estado, contra as políticas sociais e em defesa do direito das minorias e, principalmente, em torno da pauta dos costumes, nem sempre disfarçando seu racismo, misoginia e LGBTQIA+fobia. Há ainda ambiguidade política entre a população, mas a apatia política me parece muito menor que antes de 2013, mesmo que o interesse pela política ainda não passe pela participação nas eleições. Se em 2013, direita e esquerda em certo momento estiveram juntas na rua, ainda que sob tensão e alguns conflitos, a partir de 2015, temos um acirramento político em nosso país, que não é exatamente fruto de 2013, mas sim do que se fez (e o que não se fez) com aquela enorme energia popular cultivada pelas Jornadas.
Por que ainda é relevante falar das Jornadas de 2013 em 2023? Nos últimos 10 anos, houve mudanças significativas no cenário político ou nas políticas públicas após os protestos? Quais?
Prof. Luis Antonio Groppo: Paulo Arantes, ao conceder entrevista para nossa pesquisa, é patente ao dizer que as Jornadas encerram a “Nova República” criada após o fim do regime militar e civil em 1985. Por um lado, os partidos e os estratos políticos tradicionais – à esquerda e à direita – resistem a uma profunda reforma das instituições e mecanismos políticos, mantendo uma democracia representativa bastante deslegitimada, a ponto de eleger como presidente e para tantos outros cargos eletivos candidatos com o discurso antidemocrático. 2013 não me parece exatamente a causa da ascensão da extrema-direita ao poder, das respostas espúrias à crise econômica que se abateu no Brasil desde então, da retração dos direitos sociais e trabalhistas. Isso sem contar a postura irresponsável do governo federal à pandemia da covid-19. Há de se lembrar que em 2014, Dilma foi reeleita. Quando o candidato perdedor e seu partido, Aécio Neves e o Partido da Social-Democracia (PSDB), não reconhecem a vitória de Dilma, se inicia um amplo processo político, social e midiático que vai costurar o impeachment da presidenta. No fim, o PSDB e outros partidos de centro foram engolidos pelo monstro que ajudaram a criar, e creio que o próprio PT subestimou o candidato de extrema-direita que se elegeu presidente em 2018.
Olhando retrospectivamente, como você avalia o legado das Jornadas de 2013? Quais lições podem ser aprendidas com esse período de mobilização social?
‘As Jornadas, em sua latência e primeiros e últimos protestos progressistas, esboçou um interessante projeto de ativismo político mais horizontal, participativo, autônomo e menos dependente das burocracias tradicionais, que emperravam a própria esquerda na defesa de pautas em prol dos direitos humanos. “
Prof. Luis Antonio Groppo: As Jornadas, em sua latência e primeiros e últimos protestos progressistas, esboçou um interessante projeto de ativismo político mais horizontal, participativo, autônomo e menos dependente das burocracias tradicionais, que emperravam a própria esquerda na defesa de pautas em prol dos direitos humanos. Trouxeram ainda pautas inovadoras, em torno do direito à cidade. Havia e há neste legado uma outra prática política de esquerda e uma renovação da democracia, que poderia se tornar ainda mais participativa e próxima das necessidades e interesses das pessoas comuns.
Por outro lado, 2013 ensinou à direita a possibilidade de usar as ruas e a mobilização popular em prol de suas pautas e interesses, modificando sua estratégia clássica de desestimular a participação e concentrar as decisões políticas em uma elite dirigente comprometida com o ideário neoliberal. Acredito que ela não exatamente ganhou as ruas em 2013, apesar do MPL-SP ter se afastado das ruas da capital paulistana no final de junho, mas voltaria com força nos protestos de 2015 e 2016 pelo impeachment de Dilma, gerando uma opinião pública à direita que se deslocará em prol do candidato vencedor das eleições presidenciais de 2018 – e que quase reelegeu este presidente em 2022.