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Boa prosa sul-mineira

Como diz o autor no prólogo, Por dentro do redemunho (1995) se compõe de “relatos orais de histórias passadas de boca em boca”, constituindo um “resgate da linguagem” falada outrora na microrregião que abrange as vizinhanças da cidade de Cabo Verde: Divisa Nova, Muzambinho, Campestre, Alfenas e Areado. Observadas essas dimensões, a obra de Victor Hugo Romão é uma preciosidade; dificilmente alguém poderá iniciar qualquer inventário linguístico do Sul de Minas sem a considerar, ao passo que as narrativas recuperadas (ou inventadas) pelo autor documentam de maneira única costumes e uma maneira interiorana de ser já quase extintos. Veja-se, a propósito, estes trechos:

Nisso que ele falava, evinha chegando um tipo aprumadinho, todo-todo,
um sujeito serelepe, o andarzinho muito digno, o saco de bugigangas
às costas. Roupinha de brim ganhada de outros, cheio de circunstâncias.
As mãos e os dedos em festa, muito explicativo, meio muito prosaico de antigo.
O riso subalterno, de poucos dentes, um camarada muito comprido, magrelo
e esquelético, custoso de saber onde – um sujeito sambanga esse – pudesse
ter sido produzido. Decerto onde o Judas perdeu as botas (…) O andar de quem
está de sapatos novos, como que pisando nos ovos, meio apalpando, nas Cautelas.
O andar cadenciado – como quem diz: tira o pé do balainho, põe o pé no jacazinho –
com cara de sandeu. (p. 132-133)

Primeiro, o Silvio apresentava o programa em gravações variados na sua PR Alegria,
no jardim. Das sete às oito, o povo fazia avenida: homens num sentido, as mulheres
no outro; os brancos no passeio lateral, os negros no central, para não misturar.
Antes de cada música, os reclames locais da Casa Guarani e da fábrica de queijo
do Bergander, entremeados com os reclames do sabonete Eucalol, Glostora e das
famosa pílulas de vida do Dr. Ross (…)  

No passeio da avenida era que o pessoal começava de namorar: “andavam de bonde”,
um estranho passeio local, longe um do outro, os casais de namorados muito raramente
de mãos dadas, privilégio dos noivos. (p. 171)

Quem tenha alguma familiaridade com os municípios onde se ambientam esses relatos logo reconhecerá elementos que evidenciam a documentação factual baseando o trabalho do autor como ficcionista. O que o livro tem de melhor é a recuperação de expressões e palavras em desuso – ou quase – como “perder os trem de pitar” (ficar extremamente irritado), “mucuta” (sacola de pano”), “sambanga” (sujeito pouco inteligente) e “zanga-sabão” (pessoa desagradável ou inoportuna). Quanto aos episódios relatados, a massa que eles formam é um pouco heterogênea e descontínua, mesmo considerando sua organização como sequência de “causos”. É inegável, porém, que depõem sobre aspectos essenciais para o reconhecimento de uma cultura especificamente sul-mineira.

Haverá, para o livro de Romão, o olhar do leitor que o percorre como quem ouve um contador de histórias ao vivo e aquele do pesquisador, atento às preciosidades da linguagem e às pistas para uma investigação sociolinguística ou histórica. No caso da História – sobrando material para um romance capaz de rivalizar com Cem anos de solidão (1967), do colombiano Gabriel García Márquez –, somente o capítulo que discorre sobre a mitológica herança do Barão de Cocais já seria motivo para alentados estudos, sem contar a intricada árvore genealógica que o autor descreve, chegando a reproduzi-la num esquema a páginas tantas. Bem entendido: o mencionado romance infelizmente não existe, é só uma hipótese.

Nos sobrenomes componentes da tal árvore, que está mais para um arbusto genealógico, destaque para os Romão, dos quais descende o próprio escritor, e para os Figueiredo de Divisa Nova, habitantes, muitos deles até hoje, na comunidade rural da Paca. Houve mesmo certo parente desses últimos que esteve convicto, por uns tempos, da possibilidade de tirar o pé do lodo “com o merdeiro” (reproduzimos o trocadilho em que Victor Hugo Romão insiste várias vezes) do tal nobre, que foi sócio de empresários ingleses em empreendimentos de mineração, pelo que existe até um município mineiro com seu nome. O mesmo parente dos Figueiredo – que não era nenhum personagem de ficção – guardava, escondido no fundo de uma gaveta, certo punhal com cabo de madrepérola que teria pertencido ao assassino de aluguel “Theofinho”, ou Theófilo de Figueiredo, uma das figuras em destaque no livro.

Entre os causos que Romão narra, tomando de empréstimo a voz acaipirada de um certo Zé Bardo (José Ubaldo), está aquele em que Theófilo mata o fazendeiro Quim Custódio, tornando-se alvo de uma caçada que só terminará bem mais tarde, quando é assassinado (por acaso) depois de sofrer muitas horas de torturas a mando de Custodinho, filho do primeiro morto, o qual mais tarde será também vítima de vingança homicida. As mortes por motivos políticos, desforra pessoal e “defesa da honra” ultrajada pelo adultério são comuns nesses microenredos que Romão parece ter pretendido entrelaçar ao modo de um romance.

Outra voz que o narrador toma de empréstimo é a do “Dr. Filadelfo”, seu compadre, marcada por um registro mais culto, pois esse personagem é advogado e líder político habituado às tratativas em palácio. Suas falas não contam histórias, fazem descrições e dissertam sobre aspectos relativos à organização de uma típica fazenda sul-mineira de café por volta de 1930. Ao redor desse ano gira a maioria dos enredos, pois há uma evidente fixação do narrador por dois fatos históricos da época: a quebra da bolsa de Nova York, que gerou falências em cascata na economia cafeeira da região, e a Revolução de 1930, pela qual Getúlio Vargas ascendeu ao poder. As referências ao fim da política do café-com-leite, de acordo com a qual se revezavam na presidência da República os governadores de Minas e de São Paulo, trazem sempre certa melancolia nostálgica, não deixando o autor de manifestar, também, simpatia pelo Integralismo, que teve intenso apoio na região.

A corrente dos “causos” deságua num episódio que lembra cenas de faroeste e não deixa de evocar Grande sertão: veredas (1956), a obra-prima da moderna ficção brasileira, cuja emulação, desde seu título, o livro de Romão não disfarça (“O Diabo na rua, no meio do redemoinho” é um bordão rosiano referente ao combate final entre Riobaldo e Hermógenes). No desfecho, Théo e mais três bandidos, considerados “heróis” pelo narrador, resistem até a morte contra uma numerosa força policial convocada pelo governador Antônio Carlos, na época (1932) chefiando o Executivo mineiro, para restabelecer a ordem numa Cabo Verde tomada pela jagunçagem a serviço dos fazendeiros.

A emulação do estilo de Guimarães Rosa propiciou alguns dos melhores trechos do livro, como este:

Era só uma treva espessa, de noite sem lua, um eclipsis total, um cataclismo: o fim do
mundo. Era ele só e seus pensamentos: mas, como que podia o mundo ter se acabado, se,
pelos sons entrando nos ouvidos, tudo parecia normal? Tudinho: o canto dos passarinhos
e o bater duma porteira, longe, longe: a cantiga chorada dum carro-de-boi, decerto em
movimento: o surro espalhafatoso do jumento chamando “por que que ocê num vei onti,
onti, onti?”; o berro angustiado dos bezerros e das vacas paridas, procurando um encontrar
o outro; a saracura no brejo esbaforida: quac… quac… quac… qua, qua, qua, qua; o passarinho
anunciando: “peixe frito, peixe frito”; outro respondendo: “bem-te-vi, bem-te-vi”; a pomba-do-ar
e a juriti arrulhando; o casal de fogo-apagou, amorosos; as seriemas fazendo estardalhaço
em dupla de anunciantes; a araponga martelando o seu ferro; o ruído no mato próximo e toda
aquela folia de barulhos normais, bulhas de bichinhos menores, do cotidiano de um dia de roça
que um escuta, mas não põe sentido no normal. (p. 237)

Mesmo sendo obra à qual falta, como prosa de ficção, a indispensável segurança quanto à disposição proporcional de seus elementos e até algum instrumental linguístico (o que dá maior relevo à aventura do autor pelas veredas do idioma), Por dentro do redemunho está a merecer uma cuidada reedição. Não se pode falar em cultura sul-mineira sem conhecer um livro assim, o mesmo valendo para as peças e a contística de Waldir de Luna Carneiro e para os romances de José Vicente (Os reis da Terra) e de Ildeu Manso Vieira (Mandassaia).

Título: Por dentro do redemunho
Autor: Victor Hugo Romão
Gênero: Romance
Ano da edição: 1995
ISBN: 85-7372-000
Selo: Scortecci Editora

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).