Bem longe do guia turístico

Ler literatura portuguesa pode trazer de volta, para quem teve uma infância leitora, aquele prazer antigo de deparar com pequenas dificuldades de entendimento do vocabulário e da sintaxe, certo estranhamento que quase nos faz sentir que estamos lendo um texto em outra língua. No caso da obra de Miguel Torga (1907-1995), esse prazer às vezes ultrapassa as medidas a ponto de avizinhar-se, com frequência, de um estilo meio alambicado, um quase-barroco moderno.

Há quem pense, e não sem razão, que Torga, assim como António Lobo Antunes, talvez merecesse mais que José Saramago o prêmio Nobel. Sua produção numerosa, feita principalmente de poesia e ficção, merece destaque entre o que de melhor produziu a literatura em língua portuguesa no século XX. Especialmente três reuniões de contos, Bichos (1940), Contos da montanha (1941) e Novos contos da montanha (1944), estão repletas de obras-primas da narrativa curta.

Em Portugal (1950), o ficcionista faz uma espécie de reportagem livre sobre as diversas regiões que compõem seu país, começando pelo Norte onde nasceu – em uma aldeia minúscula chamada São Miguel de Anta. Correndo o mapa em direção ao Sul, Torga vai anotando lugares e coisas que, “ao cabo e ao resto”, como ele gosta de repetir, compõem uma espécie de interpretação psicológica do país. Psicológica e muito pouco política, pois essas novas Viagens na minha terra (o escritor tem o livro de Almeid Garrett como inevitável referência) ocorreram no auge da ditadura salazarista, quando seria muito arriscado interpretar Portugal politicamente com alguma honestidade. O remédio terá sido colocar toda e qualquer crítica numa chave mais ampla e alusiva, recuperando de passagem o dito famoso do poeta latino Terêncio:

A verdade tem sempre uma fase evidente. Nenhuma cal das paredes embranquecia as

trepadeiras, nenhum vento laborioso conseguia varrer o halo bacante e feminino que de

lés a lés se respirava. Festivos, os caminhos eram passadeiras glaucas de permanentes

romarias; pejadas de sol e mosto, as cigarras de saias pareciam parir por cissiparidade;

 sobre cada coração verdadeiro cintilava um coração de filigrana; a própria voz da

desgraça se confundia com a voz dos cavaquinhos a moer alegria. E se tudo quanto é

humano e do mundo me interessa, nem de tudo gosto.

É assim o estilo de Torga, feito de um duplo olhar sobre o mundo externo e o interior. Ambos são ricos de poesia e ritmo, e essa riqueza é traduzida em associações surpreendentes e às vezes difíceis de captar. Falamos de um livro para leituras e releituras, o que é a regra para leituras que valem a pena.

E o viajante vai descendo em direção à Beira, região central do país, às vezes se referindo a qualquer cidade por meio de uma única frase. Suas maneiras de falar dos lugares não obedecem a nenhum rigor geográfico, mas ao vaivém do espírito entre partes que atiçam menos ou mais o seu imaginário. A extensão maior ou menor de cada capítulo, também, indica suas preferências e afinidades, por isso o espaço gasto com Trás-os-Montes (“um reino maravilhoso”) e com o Alentejo é tão maior que as duas páginas dedicadas ao litoral, essa franja que a muitos parece o mais interessante de Portugal.

Mas nada salta aos olhos tanto como as 16 páginas gastas, num volume magro, com a cidade do Porto, origem do próprio nome do país, que nesta passagem é comparada a Lisboa, a qual merecerá apenas cinco páginas:

Lisboa é um mostruário colorido e barroco de uma parte aventureira do
nosso sangue. É, sobretudo, simultaneamente, um cais de embarque e
desembarque da pressa que percorre o mundo. Cidade de muitas e desvairadas
gentes, já lhe chamava o outro. Ora o Porto lembra-me antes uma séria e pacata
citânia lusa, murada da nossa altivez de cavadores.

Torga identifica-se muito mais – seus contos o demonstram cabalmente – com o Portugal rural, mesmo que ao falar dele encontre pretexto para alfinetar os compatriotas:

Dos lastimáveis defeitos do português, o mais feio é certamente a mania sorna de ter sempre na manga do casaco um baralho falsificado, uma navalha de ponta e mola, uma pistola de cinco tiros, um porrete erguido por detrás de uma bouça, uma aleivosia diabolicamente maquinada.

Nada se compara, porém, à bile secretada pelo otorrinolaringologista – profissão que exerceu a maior parte da vida e que lhe permitiu não se importar muito com a vendagem de seus livros – contra a Universidade de Coimbra, onde se formou e que considera uma embalagem bonita para conteúdos enganosos:

Na índole do que ensina, existe, persistente, a marca das coisas cabeçudas
e provincianas. O tratado reduz-se a sebenta, a tradição a praxe, o saber a
erudição. Não há um invento, uma ideia, uma teoria que tenha nascido ali.
Mas nem os inventos, nem as ideias, nem as teorias são necessárias a uma
Universidade que se bata no simples fato de o parecer aos olhos da ignorância
coletiva. Por isso se defende com unhas e dentes de toda a originalidade, de todo
o pensamento subversivo, recusando-se obstinadamente a o pôr de lado a borla
e o capelo da mistificação e a abrir nos seus muros medievais um postigo sequer
que deixe entrar qualquer luz atual.

Severíssimo julgamento de quem talvez quisesse atingir, por tabela, a boçalidade sempre de plantão para adular os poderosos de turno, os salazaristas por oportunismo e falta de coragem. Torga foi sempre um desmancha-prazeres, um homem irredutível em suas opiniões, pouco se lhe dando que o acusassem de eternamente chover nos piqueniques alheios. Elogio quase irrestrito, mesmo, ele guardou foi para o Alentejo, região em que via se manifestarem as maiores qualidades de seu país:

O Alentejo, visitado por alguém que leve consigo a capacidade emotiva e compreensiva
de um verdadeiro curioso, é um Sésamo que se abre. A sua pré-história, os seus
costumes, as suas fainas, as mutações impressionantes do seu rosto quando em frio ou
quando tem calor, os seus trajes e sua própria fala – são outros tantos motivos de
meditação e admiração. Mas o que nele é sobretudo extraordinário é sua inflexível
determinação de conservar uma fisionomia inconfundível, haja o que houver.

Portugal não vale como guia turístico. Seus escassos elogios a monumentos – predominantes quando fala da de Évora – não são de feitio a guiar uma visita ao país, mesmo porque este é tão vário e belo, tão cheio de surpresas e encantos que muito surpreenderia aqueles que sonham com uma visita de beija-flor a Paris e mais meia dúzia de cidades europeias, quando somente o Museu do Louvre exigiria umas duas semanas para ser conhecido superficialmente. O livro é muito mais uma crônica emocionada, passional quase, daquela faixa de terra espremida entre a grandeza da Espanha e a imensidão do Atlântico, a qual, nos mapas, se afigura tão pouco significativa, não fosse, como diz o poema de Pessoa, o rosto com que a Europa mirou desde sempre o Ocidente. A leitura dessa obra de Miguel Torga vale como iniciação a um dos mais belos estilos pessoais da língua portuguesa e à visada ao mesmo tempo telúrica e universal que proporciona ao escritor a condição de clássico, tão difícil (se não se barateiam demais os adjetivos) no mundo posterior à universalização uníssona da estupidez.

Título: Portugal
Autor: Miguel Torga
Gênero: Romance
Ano da edição: 2017
Selo: D. Quixote

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).