Pronto-socorro filosófico

O escritor norueguês Jostein Gaarder propôs a si mesmo, com O mundo de Sofia (1991), um duplo desafio: contar uma história imaginária e, dentro dela, resumir toda a filosofia ocidental. Saiu-se melhor na parte mais importante, a do resumo; realmente, seu livro apresenta um verdadeiro pronto-socorro filosófico para leigos nessa matéria ao selecionar, com didatismo e economia, os maiores problemas do pensamento desde os filósofos pré-socráticos até a metade do século XX. É verdade que “pula” nomes importantes como Schopenhauer, Nietzsche e Wittgenstein, mas vale por uma boa apresentação da tradição filosófica. Quanto ao aspecto ficcional…

A história de Sofia Amundsen não passa de um veículo para o verdadeiro assunto, mas, a partir da metade do livro, a narração se embanana bastante, principalmente devido à tentativa de construir um contraponto entre as situações de Sofia e de seu duplo, outra garota norueguesa de 15 anos cujo pai, como o seu, vivia ausente devido à natureza do trabalho exercido. Um primeiro efeito bem visível desse descaminho é o aumento das intervenções puramente fáticas, do tipo “Acho que entendo o que você quer dizer”, nas quais Sofia se dirige a seu interlocutor, Alberto Knox. Ele também é um duplo, aliás quase homônimo, do pai de Hilde, a outra garota.

Essa armação até que funciona bem na primeira metade do romance, não chegando a prejudicar o objetivo principal. Ocorre que, quanto mais a narrativa se aproxima de seu desfecho, mais casuísmos vão sendo necessários para eliminar as pontas soltas do enredo. Assim, do ponto de vista ficcional, O mundo de Sofia resulta bastante manco.

Para quem, cheio da boa vontade de iniciar-se na filosofia, fechar os olhos a esse defeito, a leitura pode ser um grande acontecimento existencial. Dificilmente haverá lugar melhor para compreender as grandes questões do pensamento ocidental, tratadas em misteriosos envelopes que certo dia a protagonista começa a receber. A mãe de Sofia, devido ao comportamento estranhável da filha, que começa a ficar cheia de mistérios, chega a sondá-la sobre a possibilidade de ela estar namorando um usuário de drogas. Mas o “namorado” era, de fato, um cinquentão que resolvera contemplar a garota com um curso completo de filosofia por correspondência. Mais adiante, as aulas começam a ser presenciais, e assim continuam até o final do livro.

A viagem de Sofia começa como os filósofos pré-socráticos, ou seja, anteriores a Sócrates (470-399 a. C.), que se preocuparam em oferecer explicações racionais para os fenômenos da natureza – sem o recurso aos deuses, que havia caracterizado a cultura grega até então, como se vê nas demasiado humanas quizílias entre os habitantes do Olimpo reportadas por Homero na Ilíada, poema épico do século IX a.C. O preceptor de Sofia tem, por exemplo, o cuidado de perguntar a ela “por que o Lego é o brinquedo mais divertido” antes de enviar sua aula sobre Demócrito, aquele pensador que lançou a ideia do átomo, tão importante até hoje para nossa compreensão da matéria (embora o nome não mais se justifique, pois átomo significa “indivisível”). É pena que, já nessa primeira parte do curso, Alberto Knox tenha excluído os brilhantes paradoxos de Zenão de Eléia (490-430 a.C.) e a genial ideia que teve Eratóstenes (276-194 a.C.): ele calculou a circunferência do planeta com espantosa precisão usando apenas a sombra de uma haste fincada no chão – errou por apenas 308 quilômetros, mas desde esse evento se tornou incontestável o fato de a Terra não ser plana, o que teve grandes consequências em toda a história da inteligência humana e, como pudemos observar recentemente, também na da estupidez.

Seria demais, é claro, exigir que um curso como o de Alberto Knox fosse completo. E Sofia segue aprendendo a história do pensamento grego, entendendo como a ideia de prescindir dos deuses influenciou o estudo da história, com Heródoto e Tucídides, e a medicina (mas por que transcrever na integra o juramento de Hipócrates?), resultando em intuições incrivelmente corretas e chutometrias inqualificáveis que chegaram até o século XX.

Em seguida virá Sócrates com sua maiêutica (“partejar” a verdade por meio de perguntas), suas ironias e a primeira tentativa filosófica de estabelecer normas universais de conduta, tudo decorrendo da invenção da democracia em Atenas e de uma consciência coletiva sintetizada na lapidar frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Nessa parte do livro se define bem, por contraste, a tarefa da filosofia:

(…) a humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil encontrar

uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos simplesmente

enganar a nós mesmos e ao resto do mundo como se soubéssemos de tudo o que vale a

pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos para essas questões

importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isso divide a humanidade em duas

partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que estão cem por cento certas, ou

então se mostram indiferentes.

Na esteira de Sócrates chega Platão, seu discípulo, que quis, com uma crença excessiva na razão (a mesma de tantos pensadores que vieram depois), superar as contingências do mundo e fundar o pensamento além do que podemos perceber com nossos sentidos. Aluno de Platão, Aristóteles inverte completamente  a metafísica de seu mestre e praticamente funda o método científico – depois aperfeiçoado por Galileu, Bacon e Newton, entre outros – por meio de uma lógica unificadora da qual surge a ideia de um único deus, que serviu como luva, a partir da helenização do cristianismo, para a justificação teórica dessa crença judaica que se tornou a segunda grande religião monoteísta, mas a primeira em número de adeptos e em influência na cultura ocidental.

Enquanto vai recebendo envelopes com perguntas intrigantes e novas aulas, Sofia começa a comportar-se como filósofa: formula seus próprios problemas, percebe que nunca se havia dado conta do quão ignorantes somos etc. Uma das melhores aulas que ela tem é aquela sobre o período helenístico, mais ou menos coincidente com o surgimento e a primeira expansão do cristianismo, época que soterra o mundo antigo e abre as portas da Idade Média, na qual brilhariam os sistemas de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino, ambos importantíssimos por terem reproposto, respectivamente, as filosofias de Platão e de Aristóteles à luz da fé cristã.

Então, chega o Renascimento, com descobertas astronômicas que redimensionam o lugar do ser humano no Cosmos e promovem a ligação definitiva entre filosofia e ciência – a partir daí, as especulações religiosas começam a perder sua importância para a objetividade crescente do método científico.  E, nessa trilha, seguem-se Descartes, Spinoza, o empirismo inglês e o Iluminismo, tudo desembocando nos “avós” do pensamento moderno Kant, Hegel e Kierkegaard, para, em seguida, resultar num fechamento apressado às portas do século XX: Marx, Darwin, Freud e “nosso próprio tempo” – que praticamente se resume ao existencialismo.

No último terço de O mundo de Sofia, torna-se evidente certa exaustão. Afinal, deve ter sido muito grande o esforço do escritor, que com essa obra ganhou (merecidamente) notoriedade mundial e, na década seguinte, produziu mais de uma dezena de títulos. Tanto o esforço de resumir a filosofia como o de resolver a equação narrativa num todo ao mesmo tempo coerente e capaz de manter o interesse do leitor. É pena que não tenha podido caprichar mais, mas também é certo que a versão aprimorada do romance resultaria num volume muito maior – e ele já passa das 500 páginas.

Título: O mundo de Sofia
Autor: Jostein Gaarder
Gênero: Filosofia
Ano da edição: 1995
ISBN-10:‎ 8571644756
ISBN-13: 978-8571644755
Selo: Companhia das Letras

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.