Uma das características das sociedades subdesenvolvidas é o fato de serem economias onde predominam unidades produtoras de bens primários voltadas para a exportação. Essa é uma herança que remete ao período colonial, e que no caso brasileiro confunde-se com a própria identidade estabelecida neste território. A ideia de Brasil é resultado de um empreendimento comercial português, cujo principal nicho de mercado foi a extração de pau-brasil para a exportação. Portugal, aliás, sequer demandava o pau-brasil. Operava apenas como articulador da extração no Brasil e da comercialização no continente europeu. Paris era então o principal consumidor da madeira, que servia ao tingimento das roupas da elite local. O desmatamento empreendido ao longo de toda a costa atlântica brasileira foi um esforço para colorir os vestidos e adoçar as bocas – já no ciclo da cana-de-açúcar – da nobreza europeia1.
A rigor, são cinco séculos de Brasil com a mesma função na divisão internacional do trabalho. Cabe a nós produzir artigos de baixa complexidade em grandes quantidades, vendidos a preços com tendência de desvalorização no mercado mundial. Foi assim com o pau-brasil, com o açúcar, com o café, e segue assim com a soja e o minério de ferro contemporaneamente. São esses os nossos principais produtos de exportação – somados às proteínas animais – e o Brasil de hoje, apesar da independência, da república e da redemocratização, ainda é estruturalmente muito parecido com o Brasil do século XVI. Seu sentido civilizatório ainda permanece o mesmo: uma colônia de exploração de recursos naturais. Esse é o ethos econômico da Terra Brasilis. Mas, nos interessa que siga sendo assim?
Uma economia que se volta para fora concentra suas energias e capacidades produtivas na produção de bens que não servem à população local. O setor mais dinâmico da economia reage aos impulsos do mundo exterior, e o que sobra é comercializado internamente. O capital, a mão de obra, o suporte técnico e financeiro – privado e público – os melhores recursos do país são direcionados a plataformas produtivas que não atendem às necessidades locais. É verdade que a exportação desses bens gera dólares, mas o volume gerado não só é cadente – em valor unitário – como também insuficiente para as necessidades de importações. Mesmo que toda a Amazônia se tornasse uma imensa pastagem, pontilhada de cultivos de soja e de sítios de mineração, o Brasil seguiria sendo um país pobre, incapaz de prover padrões de vida razoáveis à maioria da população, e pior, acossado por graves problemas ambientais e sociais2.
Commodities são produtos homogêneos, com as mesmas características independentemente de onde e como foram produzidos. Por isso, a concorrência se dá por preços, e a expansão da produção mundial tem como efeito a redução dos preços internacionais. Assim, dada a baixa elasticidade-renda da demanda por commodities3, a procura por bens primários tende a crescer menos que a economia mundial4. O recente ciclo de alta dos preços das commodities – provocado pelo milagre chinês – já perdeu grande parte de seu impulso5. O resultado nas próximas décadas é uma provável redução do valor relativo gerado pela produção de soja e outras commodities, dado o aumento da produção brasileira e a progressiva entrada de concorrentes nesses mercados. Vale lembrar que a história da economia brasileira é marcada por ciclos primário-exportadores que cedo ou tarde entraram em decadência, justamente pela entrada de concorrentes no mercado mundial. Foi assim com a cana-de-açúcar, com o café e com a borracha6.
Mas, o principal problema da especialização produtiva em bens primário é o aspecto distributivo. As receitas da produção de commodities se concentram nas mãos de uns poucos agentes econômicos, dada a enorme concentração da propriedade da terra típica dos países subdesenvolvidos como o Brasil. Os proprietários de terra são individualmente muito abastados, e mantêm padrões elevados de vida largamente abastecidos por importações. Produzem para fora, e consomem de fora. O resultado é uma economia com mercado interno frágil e de alta vulnerabilidade cambial. E pior, a mecanização e a incorporação de tecnologias importadas no campo tornam o trabalho humano cada vez menos necessário, e a produção se expande desempregando. A massa salarial paga é cada vez menor, comprimindo a demanda interna. Economiza-se mão de obra brasileira, introduzindo técnicas importadas.
Tudo isso resulta na paradoxal situação de uma economia especializada na produção de produtos agropecuários, mas que não retém mão de obra no campo. Os desempregados do setor rural deslocam-se para as cidades – no chamado êxodo rural -, aumentando a disputa pelos escassos postos de trabalho disponíveis. Não por acaso, a América Latina é a região mais urbanizada do mundo7, superando a taxa de urbanização europeia, ainda que em condições absolutamente precárias. E assim, o Brasil é hoje o maior produtor de alimentos do mundo, mas não há emprego no campo. As áreas produtoras de grãos e gado são grandes vazios humanos, e uma única pessoa é capaz de realizar o trabalho que cobre a área de centenas de campos de futebol. Os bilhões do agropop – televisivamente alardeados – não circulam na economia brasileira e não servem aos brasileiros, e são financiados em grande medida com recursos públicos. Trata-se de uma atividade produtiva que abastece os mercados dos EUA, da China e da Europa, empregando tecnologia importada, e enriquecendo um punhado de pessoas que gastam suas fortunas em viagens e bens importados.
Mas a tragédia só se vê completa quando se analisa o mercado interno dos alimentos consumidos pelos brasileiros. A produção para exportação compete por espaço com a produção de feijão, mandioca, arroz e outros produtos consumidos pelos brasileiros. O que comemos todos os dias não é produzido pelo agronegócio8, e sim pela agricultura familiar9, com baixa dotação de tecnologia, capital e assistência técnica, e sem gozar do mesmo apoio estatal. A produção de alimentos para o mercado interno se expande com dificuldades, e sempre que a economia cresce – ou quando o brasileiro passa a comer melhor, como ocorre com os auxílios governamentais – temos pressões inflacionárias que se manifestam nos alimentos. Essa é uma das razões que permite que tenhamos agora inflação em paralelo a uma profunda crise10.
Economia Política da Terra: a marcha para o oeste
Tomados em conjunto, esses argumentos desmobilizam a tese de que a preservação ambiental é um entrave ao desenvolvimento do país. O agronegócio emprega pouco, demanda pouco do mercado brasileiro, e serve pouco aos brasileiros. E desmata muito. E pior. Compete por terra com as atividades que de fato nos servem, geram emprego e são compatíveis com a preservação das florestas: a agricultura familiar de pequena escala. Mas essa é apenas uma parte do problema. O Brasil não é para principiantes.
O principal vetor de desmatamento não é sequer o impulso para produção agropecuária, mas simplesmente uma corrida pela terra, ou land grabbing como diriam os anglo-saxões. A infeliz verdade é que a forma mais barata de obter terra no Brasil é desmatando ilegalmente para uma posterior legalização. Derruba-se a floresta, vende-se a madeira ilegal, estabelece-se pequenos cultivos e pastagens e depois solicita-se a regulamentação da terra junto aos órgãos oficiais, como terras produtivas. Essa talvez seja a forma mais fácil de se tornar milionário no Brasil, em particular depois do ocaso da loteria contemporânea das criptomoedas. A atividade produtiva é apenas um pretexto para facilitar a legalização de terras obtidas a partir do desmatamento e do genocídio de populações indígenas. “Nunca houve mata nem índio ali. Sempre foi um pasto. Terra produtiva.”, argumenta-se. O governo, conivente com a passagem da boiada, facilita a regularização e estimula esse movimento. Daí os recordes recentes de queimadas e desmatamentos na Amazônia.
Mas isso – é preciso dizer – sequer é novidade. Confunde-se com a própria história do Brasil. O ciclo do pau-brasil desmatou a costa do sudeste, a cana-de-açúcar de Cabo Frio a Natal, as pastagens avançaram sobre as matas do sertão nordestino e sobre os pampas do sul, o café seguiu desmatando a mata atlântica pelo interior do sudeste, e a borracha impulsionou as entradas na Amazônia, sobretudo no Pará e no leste do Amazonas. O desmatamento do centro-oeste foi também na pata da vaca, já nos séculos XX e XXI, e a última região remanescente de mata virgem é a porção ocidental da região norte. Em 521 anos de história desmatamos o nordeste, o sudeste, o sul, o centro-oeste e parte da região norte, exterminando ou escravizando os índios encontrados no caminho. E ainda somos um país pobre. Aliás, cada vez mais pobre, já que nos desfizemos de nosso maior estoque de riqueza futura: a biodiversidade.
Se a luta fosse de fato pela expansão da produção, as terras já desmatadas seriam suficientes para mais que dobrar a nossa produção atual. Nos quatrocentos quilômetros que costumava percorrer semanalmente do Rio a Varginha, só se vê cultivo nos últimos cinquenta. Não falta terra no Brasil. Faltam empreendedores que queiram trabalhar dentro das regras do jogo. A zona rural do sudeste – o principal polo econômico do país – é majoritariamente um triste vazio, onde raramente se vê uma vaquinha solitária pastando. A comparação com a Europa – onde, apesar da falta de sol, não há sequer um palmo de terra que não seja cultivado – é deprimente, e visível a qualquer um que se aventure nas imagens de satélite. Mas a falácia serve de roupagem de progresso à marcha para o oeste, que é fundamentalmente um processo de apropriação privada e ilegal de terras que são patrimônio público.
As Potencialidades da Produção Agroecológica
Se a monocultura do agronegócio progride em contradição com a disponibilidade de fatores da economia brasileira, a produção agroecológica desponta como um possível remédio. A crise climática é a grande restrição do nosso século. Não tardará até que a sustentabilidade seja condição definitiva para acesso aos mercados. A principal desvantagem de produzir-se sustentavelmente é a intensidade de trabalho humano necessária para sua realização, o que costuma encarecer o produto final. Num contexto em que a tecnologia promove o desemprego em massa, principalmente em economias subdesenvolvidas e estruturalmente marcadas pelos excedentes de mão de obra, a absorção de mão de obra na produção de alimentos orgânicos e agroflorestais pode ser uma solução complementar ao processo de industrialização. O fomento das atividades sustentáveis atuaria, assim, na solução de três problemas simultaneamente: a condicionante climática, a baixa disponibilidade de emprego, e a insuficiência de demanda efetiva.
A maior parte das mazelas do subdesenvolvimento são resultado de uma economia incapaz de prover funções econômicas a suas populações. Desigualdade, pobreza e violência são resultados da ausência de emprego. Nesse sentido, cabe olhar as atividades intensivas em mão de obra como soluções. E, ademais, não há contradição latente entre a agroecologia e o agronegócio. As agroflorestas são capazes de recuperar a fertilidade de áreas secularmente degradadas que já não têm produtividade que viabilize a monocultura de grande escala. São atividades que inclusive podem se estabelecer nos interstícios vazios das áreas de proteção ambiental, acelerando o processo de recuperação da cobertura vegetal. E os produtos agroecológicos são de alto valor quando comparados com as commodities agropecuárias, ocupando portanto nichos de mercado distintos, e com alta atratividade no mercado externo. É possível, assim, imaginar a coexistência de ambas as atividades, tanto do ponto de vista da utilização do solo, quanto da comercialização de mercadorias.
Sobre os Monopólios
Monopólios são parte do capitalismo contemporâneo. Eles estão em toda parte, e é impossível conceber a sociedade sem eles. Assim, continuar a desenhar e implementar políticas públicas como se os mercados fossem livremente competitivos é não se defrontar com a realidade. Para o bem e para o mal, os monopólios são um fato. Por um lado, são instrumentos de aceleração do processo de acumulação de capital, que podem servir à dinamização da produção, tanto em expansão da capacidade produtiva, quanto na introdução de inovações. Por outro, são estruturas com poder assimétrico, que constituem reservas de mercado e permitem a exploração dos excedentes do consumidor. A questão, portanto, se coloca em como tornar os monopólios mais funcionais para o conjunto da sociedade. Garantir a expansão da geração de riqueza, fomentar a introdução de inovações, conter os exercícios de superexploração do trabalho e do excedente do consumidor e criar mecanismos que ampliem a distribuição dos lucros.
As cooperativas são um formato de empresa capaz de atender a boa parte destes objetivos. Ainda que a produtividade seja potencialmente menor, a capacidade de gerar emprego, a melhor distribuição da renda gerada, e sua relativa desconexão com as flutuações cambiais e de preços internacionais tendem a atuar como instrumentos estabilizadores dos parâmetros macroeconômicos. Um esforço na instrução técnica e a provisão de maior acesso a fontes baratas de capital permitiriam uma aceleração das inovações e aumentos da produtividade no espaço das cooperativas, o que seria uma forma de reanimar o moribundo capitalismo brasileiro. A maior flexibilidade operacional, ademais, permite melhor adaptação às exigências do âmbito da sustentabilidade.
No caso específico do subdesenvolvimento, a presença massiva de conglomerados transnacionais nos mais variados setores assume um caráter de superexploração que se traduz em estratégias de preço que abarcam largas margens de lucro, e que incorporam os repasses cambiais nas suas estratégias de preço de fornecimento ao mercado local. Em outras palavras, os grandes conglomerados internacionais praticam preços tão altos quanto possível, que tendem a aquecer as trajetórias de preços internos. No contexto em que vivemos, os oligopólios organizados nos mercados de bens essenciais sabem que o pagamento do auxílio emergencial garantirá uma demanda pujante com baixa elasticidade aos aumentos de preço. Essa é uma estratégia que garante uma recomposição das margens de lucro em dólares, possivelmente deterioradas pela evolução do câmbio, mas que pressiona os policy makers – que raciocinam a partir de uma lógica neoclássica – a reduzirem o volume dos auxílios e desarticula as possibilidades de criação de uma política pública permanente, dada a ameaça de escalada da inflação. Esse é um resultado da confiança depositada na produção em larga escala articulada por atores internacionais que não tardam em assegurar a expansão de sua participação no conflito distributivo, mesmo que isso custe a própria expansão futura do mercado local.
É a tragédia do interesse de curto prazo.
Notas:
1A primeira atividade econômica que de fato se realizou neste espaço foi a captura de aves silvestres para comercialização no mercado europeu como pets. Antes da Terra Brasilis e da het Zuckerland, já fomos a Terra Papagalli. Tanto as aves quanto o pau-brasil, no entanto, foram ciclos econômicos de pequena escala, se comparados com o açúcar, o ouro ou o café. (Zweig, 1944).
2A título de exemplo da inadequação da especialização em bens primários, tomemos o mercado de café. Exportamos café a aproximadamente 900 reais por saca de 60 quilos, e importamos cápsulas da Alemanha e dos EUA por algo próximo a 20 reais a caixa, contendo 10 cápsulas de 5 gramas. Isso significa que exportamos o café a 1,5 centavos por grama e reimportamos por 40 centavos, na versão encapsulada.
3Ter baixa elasticidade-renda da demanda, em outras palavras, significa uma demanda que reage pouco às flutuações da renda. Assim, a demanda por commodities varia pouco quando a renda mundial aumenta ou diminui. Isso explica, por exemplo, a resiliências das exportações num contexto de crise global. Mas também significa que a medida em que o mundo volte a crescer, a demanda por commodities crescerá relativamente pouco.
4O economista sueco Gustav Cassel introduziu essa ideia na Liga das Nações ainda em 1927. A crise de 1929 aprofundou essa percepção, com impactos no café brasileiro e no trigo argentino. Raúl Prebisch documentou a queda dos preços dos bens primários nos anos 1930, enquanto esteve no Banco Nacional da Argentina. Posteriormente, em 1948, na Comissão Econômica para a América Latina da ONU, formulou a tese de deterioração dos termos de troca, em paralelo com o economista anglo-germânico Hans Singer. O estadunidense Charles Kindleberg também chegou estatisticamente à mesma conclusão em 1943. É possível citar também o romeno Mihail Manoilescu, o francês François Perroux, e mesmo o polonês Michal Kalecki, todos economistas que discutiram as desvantagens da especialização na produção primária, sejam eles oriundos de países industrializados ou não.
5A economia chinesa é uma economia em transição. Há quarenta anos, ainda era majoritariamente rural, com altos níveis de pobreza e subnutrição. Hoje boa parte da transição para as cidades já se realizou, e a população já tem acesso a proteínas. As cidades se constroem a partir de minério, e a principal fonte de proteína na dieta chinesa é a soja. Essa demanda será permanente, mas não necessariamente crescente, e o número de produtores concorrentes de ambos os produtos se expande. Esses efeitos combinados nos permite imaginar uma trajetória de queda dos preços desses artigos no médio-longo-prazo.
6O caso da borracha talvez seja o mais emblemático. Manaus e Belém – que abasteciam o mercado mundial de pneus automobilísticos com látex – já estiveram entre as cidades mais ricas do mundo, recebendo as óperas europeias antes mesmo das cidades da América do Norte. A concorrência do sudeste asiático e a posterior invenção de um substituto sintético levaram as economias dessas cidades a uma derrocada sem precedentes.
7https://www.terra.com.br/noticias/mundo/onu-america-latina-e-a-regiao-mais-urbanizada-e-desigual-do-mundo,0cda9c01358da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html#:~:text=%22A%20Am%C3%A9rica%20Latina%20%C3%A9%20a,em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20seu%20territ%C3%B3rio.
8Uma curiosa anedota ilustra bem esse fato. Certa vez, por volta de 2009, uma empresária do setor de comida japonesa de alto luxo no bairro do Leblon se queixava da indisponibilidade de soja in natura no mercado brasileiro. O produto, que era servido cozido e salgado como petisco, tinha de ser importado do Japão, curiosamente no país que era então o maior produtor de soja do planeta.
9Cerca de 70% de todo o alimento consumido no país é oriundo da agricultura familiar: https://www.dw.com/pt-br/quem-produz-os-alimentos-que-chegam-%C3%A0-mesa-do-brasileiro/a-42105492
10Em 2020, o segmento que apresentou maior inflação foi o de alimentos e bebidas, com aumento acumulado no ano de 14,9%, muito acima da média da inflação anual, de 4,52%. Outros fatores contribuem para a inflação, como o aumento dos preços do combustível e outros preços administrados. Mas o impacto dos alimentos responde pela maior parte do resultado acumulado desde o ano passado.
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7060#/n1/all/n7/all/n6/all/v/69/p/202012/c315/all/d/v69%202/l/,p+t+v,c315/resultado
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Autor: Patrick Fontaine Reis de Araújo
Professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas
Currículo Lattes