Afinal, quem é o bobo?

Qualquer impulso pode explicar uma leitura atual de O bobo, publicado pela primeira vez em 1843 num semanário português, menos a intenção de divertir-se. O romance de Alexandre Herculano é excelente exemplo de um estilo que envelheceu pessimamente, se é que já não era enfadonho em sua própria época. As primeiras 30 ou 40 páginas, principalmente, são de desanimar o mais bravo dos leitores, de tão contaminadas por uma retórica em meio à qual se acha tudo, menos narrativa. Por que, então, alguém gastaria seu tempo lendo O bobo?

O envolvimento com a literatura passa pela diversão apenas em seu estádio mais primitivo. Além desse estádio, por sinal, não vai a grande maioria do público, o que explica que certos livros continuem vendendo milhões de exemplares. No caso do escritor português, uma consideração mais desenvolvida do fenômeno literário pode chegar até mesmo à degustação de seu estilo o mais das vezes repolhudo e prolixo. Há (ainda) gosto para tudo.

Mas o enredo de O bobo tem seus atrativos. Quando finalmente engrena, ele começa a esboçar uma interessante versão do episódio que resultou no estabelecimento de Portugal como reino independente, transcorrido na metade do século XII. É pena que a ação se disperse excessivamente por personagens secundárias e amores embaraçados nos fatos históricos de modo um pouco desajeitado. Esse ingrediente sentimental, contudo, é o único elemento que pode fazer o romance minimamente atraente para o típico leitor de ficção.

Herculano foi o principal escritor de romances históricos quando do surgimento desse subgênero na literatura portuguesa. Se pensarmos que a tradição, iniciada por ele e por Almeida Garrett, acabou resultando em obras como as de José de Alencar, Erico Verissimo e José Saramago, já ficam justificados pelo pioneirismo o estilo excessivamente datado e a prolixidade. Quem conseguir atravessar a escrita empombada de Herculano, sem dúvida, terá importantes dividendos culturais.

A cena histórica termina servindo como pano de fundo para o enredo ficcional, mas o escritor cumpre bem a tarefa de mostrar como deve ter sido o episódio em que o infante Afonso Henriques, filho da rainha D. Teresa, toma o castelo de Guimarães, situado no extremo norte de Portugal, onde a corte estava reunida sob a liderança de Fernando Peres, conde de Trava, amante da monarca, que era viúva de D. Henrique de Borgonha, o primeiro nobre a exercer o senhorio sobre o Condado Portucalense, então ainda anexo ao reino de Leão. Complicada situação, que Herculano traz ao entendimento do leitor por meio de uma tessitura feita com meia dúzia de dramas pessoais – mesmo cometendo o abuso de colocar, no ápice da ação guerreira, um caso amoroso no centro de tudo.

E onde entra o bobo nessa história? Ele é D. Bibas, um ex-monge que, abandonando o hábito religioso, havia caído na vida dissoluta e terminara nomeado como truão (bobo da corte) por D. Afonso. Sua importância no enredo não corresponde à centralidade que lhe atribui o título da obra; seu papel consiste em, como vingança pelos açoites sofridos por ordem do conde de Trava, franquear aos inimigos deste um esquecido acesso subterrâneo que, no final, permite às hostes do príncipe revoltoso tomarem a fortaleza de Guimarães. Se forem feitas as contas, D. Bibas aparece em, no máximo, dez por cento das páginas do romance.

Além da compreensão dos fatos que resultaram na independência de Portugal, declarada em 1.143 pelo filho da rainha deposta, haverá para o leitor o ganho de sentir-se, nas melhores passagens da narrativa, dentro de um tempo muito longínquo que a diligente pesquisa do escritor logra recompor, sobretudo por meio de farta descrição e de abundante referência a objetos que há muito deixaram de fazer parte do vocabulário mesmo de pessoas muito cultas, como aqueles relacionados à cavalaria e à arquitetura medieval. É pena, que, no esforço de submeter os fatos históricos à técnica ficcional, Herculano não tenha seguido a lição de simplicidade dada por Fernão Lopes, cujas crônicas fundaram a historiografia em nosso idioma no início do século XIV e, a todos os títulos, merecem muito mais que a obra do escritor romântico o interesse de um leitor atual: Fernão Lopes transforma personagens reais como o príncipe Dom Pedro, aquele da história com Inês de Castro n’Os Lusíadas, quase em figuras de carne e osso, enquanto os agentes ficcionais de Herculano, atacados de uma facúndia que remonta aos discursos trágicos (mas sem ter a grandeza daqueles), pouco passam de abstrações.

As muitas páginas gastas em O bobo com o destaque dado aos amores de Egas Moniz a Dulce, a enteada de D. Teresa, vêm embaçar o único episódio realmente empolgante da narrativa, que havia sido, pouco antes, o embate verbal entre o moço apaixonado e o conde de Trava, este apresentado no relato como pretendente a usurpador – ainda mais por sua origem “estrangeira”, num período em que os portugueses começavam a tomar consciência de suas particularidades nacionais. Até nisso fraqueja o estilo de Herculano, pois nunca fica resolutamente estabelecida a situação de Fernando Peres como vilão, assim como a rainha é ora descrita como dotada de forte personalidade, ora apresentada como submetida irrestritamente à vontade do amante.

Também o desfecho do caso amoroso incorre no cacoete trágico quase simultaneamente explorado em Eurico, o presbítero (1844), considerado a principal obra do escritor como ficcionista (pois ele também foi historiador): há uma precipitação de mortes cujo caráter súbito as torna inverossímeis, além do que a de Dulce – sem causa nomeável além do desgosto – é quase idêntica à de Hermengarda, assim como Egas Moniz tornar-se frade, poucos dias antes de segui-la rumo ao Além, é solução muito parecida com a do jovem Eurico para a desventura amorosa. Pior que tudo são os diálogos em que esses namorados se “ameaçam” reciprocamente da culpa um pela morte do outro; soam tão ridículos como os esqueletos abraçados no túmulo em “Noivado no sepulcro”, aquele poema de Soares de Passos que pelo menos serviu de mote à deliciosa paródia da dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho.

Ler O bobo, enfim, é quase uma tarefa heroica, a não ser para quem tenha enorme curiosidade e paciência, além de cerrado interesse em compreender o episódio histórico tomado como pretexto. O leitor comum ou desistirá ou sairá ecoando, bem compreensivelmente, a opinião cada vez mais difundida de que a literatura é chata.

Título: O Bobo
Autor: Alexandre Herculano
Gênero: Ficção | Literatura Estrangeira
Ano da edição: 2008
ISBN-10: ‎ 8572327371
ISBN-13: ‎ 978-8572327374
Selo: Martin Claret

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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