Novas crises, novas teorias: os economistas deveriam acompanhar novas evidências

Sexta-feira, 05 de junho de 2020

 

Por Thiago Fontelas Rosado Gambi (doutor em História Econômica pela USP e professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UNIFAL-MG)

Somente o alheamento da realidade social, especialmente de países pobres como o Brasil, pode confiar nas ‘virtudes burguesas’ como solução para a crise econômica que enfrentamos e que provavelmente nos acompanhará por alguns anos. A melhor evidência histórica mostra a insuficiência do investimento privado para ativar a economia em contextos depressivos como o experimentado agora pela economia brasileira e mundial. O exemplo mais emblemático talvez seja a grande depressão da década de 1930; o mais contemporâneo, sem dúvida, a crise financeira de 2008.

Quem poderia imaginar que um vírus microscópico jogaria novamente a economia mundial, cujos sinais vitais já não eram muito alvissareiros, numa nova depressão? A pandemia colocou a oferta e a demanda em quarentena, e jogou uma cunha nas engrenagens de um sistema econômico que não pode parar sem produzir resultados sociais devastadores. O pulso da economia mundial bate lentamente, assim como bateu lento nas crises de 1930 e 2008. Nesses casos, os sinais vitais da economia não se recuperaram naturalmente, precisaram da ajuda decisiva de aparelhos.

Por isso, a discussão relevante nos países desenvolvidos que, assim como países mais pobres, enfrentam o flagelo do coronavírus, não é se o Estado deve ou não intervir na economia e sim sobre como deve ser a intervenção estatal e o meio mais adequado de financiá-la. Negacionistas da pandemia certamente imaginam que nada deva ser feito na saúde ou na economia, pois a natureza e o mercado fariam o seu trabalho sob o desígnio divino, mas parece consensual nos diagnósticos de quem preservou os sentidos e a razão que algo deve ser feito.

Citar campeões do neoliberalismo como Hayek e Friedman para criticar a atuação do Estado na depressão é cerrar fileira junto aos soldados do anacronismo econômico. Talvez suas armas estivessem mais potentes até a última crise financeira, mas agora lhes restam apenas escudos rotos, pois a atuação estatal dos países desenvolvidos na recuperação dessa crise revolveu certezas que se achavam cristalizadas na teoria econômica pretensamente mais avançada.

Para ser justo, a discussão sobre o desenho e o financiamento do déficit público no contexto da crise do coronavírus chegou ao Brasil. Talvez não tenha pousado no ministério da fazenda, pois, mesmo diante do caos, a linha da política econômica permanece fundada no investimento privado, na austeridade e nas reformas estruturais, em que pesem concessões feitas a contragosto como o auxílio de renda emergencial, ou seja, os tecnocratas da fazenda, com desumana insensibilidade, parecem ainda comemorar o auge do monetarismo na década de 1970.

É verdade que uma maior intervenção do Estado foi ventilada por outros ministérios, como revelou o natimorto plano Pró-Brasil, do qual o ministro da economia parece ter gostado só do nome, e que serviu para mostrar o ambiente conspiratório dos gabinetes ministeriais. Mas de um governo desprovido de sentidos e razão, não se poderia esperar algo muito sério e o powerpoint da proposta, longe de se escorar no debate econômico contemporâneo, tinha mesmo um cheiro de naftalina fardada.

Não à toa, no Brasil, o debate mais interessante e atual sobre o papel do Estado na crise tem se dado fora do tóxico perímetro governamental. A discussão teórica, mas de alcance prático, relevante e antenada com a contemporaneidade tem se tornado pública por meio de diversos artigos publicados na imprensa sobre uma visão alternativa do endividamento público e seu financiamento com emissão de moeda.

Em brevíssimas contas, o financiamento do déficit público pode ser feito por meio de emissão de títulos de dívida, o mais comum, ou emissão de moeda. No primeiro caso, pagam-se juros aos portadores dos títulos que os compraram e deram seu dinheiro ao governo; no segundo caso, o dinheiro entraria direto na conta do governo, sem juros ou com juros muito baixos. O leitor verá a seguir porque isso pode ser um problema ou uma solução. O mesmo se passa com o endividamento público visto como problema por causar inflação ou solução por estimular o investimento, a geração de emprego e o crescimento econômico.

A seguir, procuro rascunhar o debate sobre o assunto travado ‘naquele jornal dos comunistas’, a Folha de São Paulo, à exceção do artigo de Pedro Paulo Bastos, publicado na agência Carta Maior, ‘daquela revista dos comunas’. Tentei me desviar das tecnicalidades e dar rostos à discussão, a fim de conseguir uma proeza: despertar o interesse do leitor não familiarizado com o tema. Certamente será um fracasso, mas vale tentar nesse mundo do avesso.

Pedro Paulo Bastos,[1] professor da Unicamp, disse com razão que o coronavírus despertou um raro consenso entre economistas em torno da necessidade do gasto público para combater as crises na saúde e na economia. É verdade, economistas de matrizes teóricas diversas parecem concordar que o gasto público vive o seu momentum. No entanto, como diria o dramaturgo Nelson Rodrigues (cuidado, não confunda com o boêmio Nelson Gonçalves!), ‘toda unanimidade é burra’, e há também economistas que veem um problema ainda maior na saída pelo Estado.

O quadrado de economistas críticos da emissão de moeda é formado por três acadêmicos, sendo um de universidade estrangeira, e um ex-presidente do Banco Central atualmente presidente do conselho do Credit Suisse no Brasil.[2] Além de concordarem na crítica, sustentam que o melhor arranjo institucional para esse fim é a combinação de regime de metas de inflação com austeridade fiscal por determinação legal. Suas posições parecem pressupor que políticos são perdulários por natureza e, portanto, as políticas fiscal e monetária deveriam ser preservadas de sua influência deletéria.

A cisão entre as políticas monetária e fiscal, e a blindagem supostamente técnica contra a também suposta atuação nefasta da política, fundamentada na ‘boa’ teoria econômica, garantiria a confiança dos agentes econômicos na política econômica, no governo (que não governaria), na moeda, enfim, na economia do país.

Argumentam que o Brasil pagou um alto preço, leia-se alta taxa de juros, por um longo tempo para conseguir uma moeda confiável e estável, uma economia sem inflação. O caminho para a prosperidade, mesmo na crise, seria manter o rumo do Poseidon, para não bater no cliché Titanic, e aprofundar as reformas liberais.

São velhas teorias que parecem não caber para novas crises. Medo e preconceito. Medo do passado, o fantasma da hiperinflação, e preconceito em relação à classe política, sem considerar que mecanismos de participação, transparência e fiscalização podem aprimorar a qualidade da representação. Contraponto que para no ponto, sem dar continuidade à frase que poderia levar a alguma solução para o problema imediato da depressão.

Segue-se a defesa do imobilismo, o tripé macroeconômico combinado com uma agenda de reformas liberais redimiria a economia do pobre Brasil. Nem parece que a economia brasileira não vinha bem desde antes do vírus, mesmo com tripé e reformas em andamento; nem parece que o vírus desembarcou no país; nem parece que o caminho da depressão já está pavimentado. A drástica consequência humana e social da crise econômica parece um detalhe irrelevante.

Do ponto de vista teórico, é uma posição conservadora ao pressupor uma relação necessária entre aumento de gasto público, emissão de moeda, aumento de endividamento, deterioração da confiança na moeda e inflação. E dogmática, porque essa relação foi desafiada pelos resultados da política de afrouxamento monetário dos países desenvolvidos; como reconhecem os próprios articulistas, o aumento expressivo da emissão de moeda nesses países depois da crise de 2008 não significou necessariamente aumento de inflação.

Não se trata, portanto, de propor soluções mágicas ou de vender falsa ilusão, o debate sobre a emissão de moeda e a ressignificação do papel do Estado nas crises depois da vaga neoliberal pode levar à revisão teórica da questão. Talvez seja preciso que as novidades se sedimentem nos ‘países relevantes’ para serem apropriadas no Brasil, alguns doutorados depois, como mais uma velha novidade, “como costuma acontecer em praças colonizadas”, diz André Lara Resende.

Essa alternativa evidentemente é alérgica a qualquer proposta de déficit fiscal e ainda mais de financiar esse gasto com emissão de moeda. A razão é razoavelmente simples e, a meu ver, passa por aquele preconceito com os políticos e com o Estado, pois necessariamente gastariam muito e mal. Financiados por emissão de moeda não haveria limite orçamentário e a situação logo descambaria para um descalabro monetário, com perda de confiança na moeda, fuga de capitais, crise cambial e, finalmente, inflação e estagnação econômica. De fato, parece que Milton Friedman nunca lhes pagou um almoço e que saímos de uma máquina do tempo nos anos 70.

Naquela época, de ascensão do neoliberalismo e do monetarismo, esse diagnóstico talvez fosse consensual entre economistas, apesar da burrice da unanimidade. Talvez ela mesma, traduzida em sua exuberância irracional, tenha sido uma das responsáveis por levar a economia mundial a uma crise financeira comparável à grande depressão da década de 1930. Foram justamente os desdobramentos da crise mais recente que ensejaram a necessidade de repensar o papel do Estado e da moeda na teoria econômica, de lançar um novo olhar, como sempre inspirado por valiosas ideias do passado, sobre a moeda e o endividamento público.

A experiência de afrouxamento monetário sem contrapartida inflacionária verificada nos países desenvolvidos desde a crise de 2008 abalou os fundamentos em que se assentava a ideia de que déficit público financiado por emissão de moeda resultaria necessariamente em inflação.

Os anos 70 parecem ter ficado definitivamente para trás e a experiência histórica tem pavimentado o caminho para revisões teóricas e novas propostas de política econômica, como o financiamento monetário do déficit público em contextos recessivos ou depressivos. A proposta desembarcou no Brasil com o coronavírus e tem sido defendida por economistas de diferentes linhagens teóricas.

Antes é preciso dizer que, se há certo consenso quanto à necessidade de aumentar o gasto público na atual conjuntura, não há acordo quanto à melhor maneira de financiá-lo.[3]  Economistas, como Nelson Barbosa,[4] ex-ministro da fazenda, aceitam o déficit fiscal como saída, talvez única, para a retomada da atividade econômica no país. Contudo, defendem seu financiamento por meio da emissão de títulos da dívida pública a serem pagos com um posterior ajuste fiscal gradual, no tempo e na intensidade correspondentes às necessidades da economia. O importante seria acertar a velocidade do ajuste, sem grandes novidades.

A discussão, no exterior e aqui, se dá mesmo sobre os efeitos do afrouxamento monetário nas economias desenvolvidas e seu uso para financiar o endividamento público necessário para alavancar o investimento produtivo e superar uma recessão ou depressão econômica. Nesse quadro, Bresser-Pereira e Nelson Marconi,[5] economistas novo-desenvolvimentistas, rejeitam qualquer possibilidade de aumento da inflação com o financiamento excepcional do déficit público por meio da emissão de moeda. Pedro Paulo Bastos, da Unicamp, concordaria com o diagnóstico e adverte que não basta disponibilizar dinheiro para a iniciativa privada para fazer investimento, porque poderia não ocorrer diante de tamanha incerteza; para que se efetive, reforça a necessidade do investimento público e, no contexto da crise de saúde, explora ainda mais as possibilidades do financiamento monetário ao sugerir a transferência de dinheiro público diretamente para as pessoas.

A contribuição ao debate de maior fôlego, inclusive com preocupação teórica mais profunda, é de André Lara Resende,[6] sim, filho do Otto Lara Resende. Ele parte da experiência do afrouxamento monetário dos Estados Unidos e Europa para propor uma revisão das teorias que associam emissão de moeda à inflação. Nesse plano, discute questões fundamentais sobre a natureza da moeda e o significado da moeda fiduciária num mundo digital, enfatizando, vá lá, o imperativo da mudança histórica sobre a teoria econômica.

Essa revisão teórica seria fundamental para subsidiar uma política econômica adequada ao tamanho da crise econômica provocada pelo minúsculo vírus, pois, em seu diagnóstico, o momento exige aumento do investimento produtivo público, porque o investimento privado simplesmente não chegará. Quem o espera, esperaria Godot. E a melhor maneira de financiá-lo seria a emissão de moeda, sem medo de inflação, como mostraram os países desenvolvidos tanto na crise financeira, como agora na do coronavírus. Sugere, portanto, uma combinação de afrouxamento monetário com investimento produtivo público, ou seja, uma atuação coordenada das políticas monetária e fiscal.

Lara Resende se pergunta por que a emissão de moeda usada nos países desenvolvidos para salvar o sistema financeiro não poderia ser usada para financiar outros investimentos públicos? Segundo ele, não haveria justificativa nesse caso para diferenciar o mundo das finanças e o da necessidade social.

No Brasil, há um problema institucional adicional para implementar uma solução como essa, pois, por lei, o governo não pode ser financiado diretamente por emissão de moeda. Mas as maiores resistências, em sua visão, viriam do peso da teoria econômica convencional, ilustrado pela crítica apresentada anteriormente, e do desinteresse dos intermediários do mercado de dívida pública, ou seja, do próprio sistema financeiro. No entanto, acredita que a participação do Estado brasileiro no investimento produtivo irá aumentar de qualquer modo, a despeito do trauma com a inflação e do tipo de financiamento.

De fato, ainda parece haver muitas questões técnicas[7] e institucionais em discussão. E nem entro na questão ideológica, pois há uma economia para cada ideologia. Mas o problema de fundo é inadiável, dramático, social e humano. Não se trata de discutir abstrações ou ilusões, tampouco de vender almoço grátis; as ideias econômicas costumam evoluir com a experiência histórica para tentar, ainda que precariamente, resolver problemas econômicos da sociedade. Como a realidade é dinâmica, a teoria econômica deveria acompanhá-la. O apego a teorias do passado, por cegueira, medo ou interesse, é uma barreira à compreensão de novas realidades.

A crise de 2008 colocou em xeque, mas ainda não em xeque-mate, a organização da economia por mercados livres e soltos. A experiência decorrente dela mostrou que os resultados da intervenção estatal sobre a moeda escaparam do alcance da teoria vigente e requer uma nova compreensão da relação entre Estado, moeda e endividamento público. Pensar o novo em economia parece urgente para vencer a crise econômica sem esquecer os condenados de sempre, os mais vulneráveis no centro e na periferia.

[1] https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Por-que-e-melhor-um-governo-emitir-do-que-endividar-se-em-uma-crise-/7/47534

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/emissao-monetaria-resolve-nao-escapamos-de-focar-nos-mais-vulneraveis.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/o-governo-deveria-emitir-mais-moeda-para-enfrentar-a-crise-economica-nao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-mendes/2020/05/entenda-os-custos-da-monetizacao.shtml

[3] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/o-falso-consenso-entre-os-economistas.shtml

[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/04/de-onde-veio-o-dinheiro.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/05/financiamento-do-tesouro.shtml

[5] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/afinal-emitiremos-dinheiro-para-lutar-contra-a-covid-19.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/o-governo-deveria-emitir-mais-moeda-para-enfrentar-a-crise-economica-sim.shtml

[6] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/05/crise-exige-superar-equivocos-sobre-emissao-de-moeda-e-divida-publica-diz-andre-lara.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/liberalismo-primitivo-de-guedes-nao-leva-a-crescimento-diz-lara-resende.shtml

Ver, do mesmo autor, Juros, moeda e ortodoxia e Consenso e contrassenso: por uma economia não dogmática, ambos publicados pela Portfolio-Penguin, em 2017 e 2020, respectivamente.

[7] No debate, Samuel Pessoa aborda mais especificamente a relação entre taxa de juros e emissão de moeda. Ver https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2020/05/imprimir-dinheiro-contra-a-crise.shtml