“As três Marias” de Rachel de Queiroz, por Eloésio Paulo

A inadequação do escritor ao mundo e a variedade dos destinos humanos vinculam mais, como temas a deduzir do enredo, As três Marias (1934) ao gênero romance do que o próprio andamento da narrativa, que em sua maior parte se parece com um livro de memórias. Memórias cuja autora é oficialmente fictícia, no caso a Maria Augusta que se apresenta logo na primeira página e só se despede na última. As outras duas Marias não passam de comparsas, embora figurem no título.

O livro poderia ser dividido em duas metades. Há uma história de Guta (apelido de família) a partir de sua entrada para o colégio interno, onde se torna amiga de Glória e Maria José, e outra a partir de sua ida para Fortaleza, onde trabalhará como datilógrafa. Em ambas, os episódios esparsos que a narradora vai recompondo de memória sublinham, quase sempre, sua incapacidade de sentir-se bem onde quer que seja; faz-lhe muita falta o sentimento de inteireza que só teve na infância, até que sua mãe morresse tão precocemente.

No colégio interno, a vida de Guta é a mesma crônica de quantas memórias se escreveram sobre a vida nesse tipo de estabelecimento. Mas tudo é narrado com um distanciamento e uma ligeireza que transmitem a sensação de pressa, como se a autora estivesse querendo passar logo à parte que lhe interessava. E, mesmo nessa parte, a mesma pressa em se desincumbir de épocas e pessoas continua se expressando na forma de capítulos muito curtos, quase crônicas memorialísticas. Até que chegam os amores, que parecem ser o grande acontecimento pelo qual esperava a protagonista – sobretudo o único deles que realmente pode ser chamado amor.

A primeira aventura de Guta em Fortaleza é com um pintor, homem casado e já bastante envelhecido. Mais do que o sujeito, parece interessar à moça a sensação de aventura, de que algo interessante está finalmente ocorrendo em sua vida de datilógrafa cujo parco salário não permitia mais do que dividir um quarto, aliás a sala de uma casa bem pequena, com a ex-condiscípula Maria José. Esta, a propósito, é a única das egressas do colégio de freiras que permanece arraigada à fé católica, escandalizando-se ao descobrir que várias de suas colegas haviam, cada qual a seu modo, pecado contra o sexto mandamento.

A outra Maria, Glória, logo se casa (direitinho) com um rapaz encantador e tem um filho idem. Nenhuma de suas amigas terá essa sorte, embora não vivam de modo tão acidentado como Violeta, que havia virado prostituta, ou Jandira, que primeiro se casa com um malando e, depois de muito sofrer com a pobreza e um filho cego, arranja um amante e recebe uma herança.

O tal pintor, Raul, é uma tremenda decepção para Guta: só queria, por trás de toda a falação romântica, desfrutar das graças da mocinha, ao que tudo indica nem tão avultadas assim. O segundo namorado nem chega a namorar, é um rapaz chamado Aluísio que Guta sempre tivera na conta de amigo e que, de repente, suicida-se deixando uma carta em que ela é dada como razão do ato extremo.

A vida adulta da protagonista apenas ganha algum sentido quando ela viaja ao Rio de Janeiro, onde conhece um médico judeu às voltas com dificuldades para obter cidadania brasileira. É nos encontros com esse estrangeiro, tão despaisado quanto ela – um no espaço, outra no tempo –, que Guta finalmente descobre o amor, e coloca-o logo em prática. Mas sua licença do trabalho (três meses, bons tempos aqueles) termina, e ela, sem dinheiro para manter-se no Rio, é obrigada a voltar para Fortaleza.

Esses últimos capítulos, para surpresa do leitor, atingem uma intensidade que falta a todo o restante do romance. É com eles que a cearense Rachel de Queiroz, merecidamente consagrada como grande escritora graças a seu livro de estreia, O quinze (1930), uma obra-prima da ficção brasileira, acaba nos mostrando por que estivemos a ler As três Marias: por que havia um drama somente passível de dar-se nas últimas páginas, pois precisava de toda uma preparação. Ou pelo menos foi dessa forma que a romancista conseguiu estruturar sua narrativa.

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