O golpe civil e militar de 1964

Marcelo Hornos Steffens

Em 31 de março, por meio de ação precipitada do general Olímpio Mourão, comandante da 4ª Região Militar, em Minas Gerais – uma vez que a Esquadra Norte-Americana da “Operação Brother Sam”, que daria apoio logístico ao golpe em caso de uma reação, estava longe do Brasil -, e 1º de abril (ampliação da rebelião militar), faz 58 anos do golpe civil e militar que derrubou João Goulart. Além das Forças Armadas, o golpe teve a participação decisiva de civis: grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, da igreja católica e de vários governadores, como Carlos Lacerda, da Guanabara; Magalhães Pinto, de Minas Gerais; e Ademar de Barros, de São Paulo.

João Goulart (Jango) foi eleito vice-presidente na chapa do candidato derrotado, marechal Henrique Teixeira Lott (anticomunista declarado) nas eleições de 1960. O voto era desvinculado: era opcional a escolha por candidatos da mesma chapa. Aliás, Jango (Partido Trabalhista Brasileiro-PTB) exerceria pela segunda vez a vice-presidência da República. No período anterior (1956-1961), ele fora também eleito, curiosamente, com mais votos que o candidato de sua chapa à presidência, Juscelino Kubitschek (Partido Social Democrático-PSD).

Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, sete meses após tomar posse, começaram os movimentos para evitar a posse legal de Jango. No entanto, o Congresso Nacional rejeitou o pedido de impedimento contra a posse de Jango, mas, através de Emenda Constitucional, instituiu o regime parlamentarista, o que limitava os poderes do novo presidente. O governo seria chefiado por um primeiro-ministro que seria escolhido pelo Congresso Nacional. Uma concessão feita para os partidários e apoiadores de Jango foi a de que haveria um plebiscito, em 1963, para que os eleitores decidissem sobre a continuidade do parlamentarismo ou pelo retorno ao presidencialismo. Em 6 de janeiro de 1963, mais de 63% dos 18 milhões de eleitores votaram pela volta do presidencialismo. João Goulart teria ainda dois anos de mandato.

Na retomada do presidencialismo, a crise econômico-financeira era grave, com uma baixa taxa de crescimento econômico e elevação da inflação. O governo tentou colocar em prática o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico, mas o plano falhou. Conforme algumas avaliações, a partir de então, para evitar um maior isolamento político, Jango, em um contexto muito conturbado, e em virtude de um Congresso de maioria oposicionista, buscou se aproximar da esquerda não parlamentar, anunciando a intenção de promover reformas de base (reforma agrária, bancária, eleitoral, tributária e a regulamentação da remessa de lucros para o exterior): Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), Frente de Mobilização Popular (FMP), vinculadas a Brizola, Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião e UNE.

Havia, também, a questão militar, talvez a mais delicada, e que envolvia o direito à eleição de militares de baixa patente (soldados, cabos e sargentos) para cargos legislativos, proibida a eleição pela Constituição de 1946, o que foi confirmado pelo STF em 1963. Isso produziu, no mesmo ano, a rebelião de sargentos que invadiram o Congresso Nacional e tomaram o STF. A rebelião foi controlada no mesmo dia (536 presos e dois mortos). Jango garantiu que preservaria a ordem. No entanto, para alguns historiadores, esse episódio teria sido o momento em que a sorte do governo Jango estaria selada, formando-se uma grande coalizão antigovernista. Os militares temiam a quebra de hierarquia nas forças armadas; as classes médias, o comunismo; a igreja católica, o ataque “às tradições brasileiras”.

No dia 31 de março de 1964, em um movimento antecipado pelo general Olímpio Mourão, em Minas Gerais, iniciou-se a derrubada de Jango. No dia 1º de abril, a rebelião militar se ampliou, correndo atrás do golpe longamente planejado e atropelado pelo general mineiro. Praticamente, não existiu nenhuma reação das esquerdas ao golpe. O famoso “dispositivo militar” de Jango não funcionou. No dia 2 de abril, novamente o rosto civil do golpe se manifestava: o Congresso Nacional declarou a “vacância” da presidência da República, com Jango ainda presidente da República e em pleno território nacional.  Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, assumiu o cargo.

Em 11 de abril de 1964, o Congresso Nacional, com 41 deputados federais cassados, elegeu indiretamente, com 361 votos e 72 abstenções, o líder da conspiração, o general Castelo Branco (1964-1967), primeiro general-presidente da ditadura que duraria mais de 20 anos. Depois dele viriam o marechal Costa e Silva (1967-1969), o general Emilio Garrastazu Médici (1969-1974), o general Ernesto Geisel (1974-1979) e o general João Baptista Figueiredo (1979-1985).

O que propunha a ditadura: a modernização (autoritária) da economia do país. A presença do Estado seria estratégica, especialmente através da criação de empresas estatais, e se articulava à ideia do Brasil grande potência. Grandes obras foram realizadas (a ponte Rio-Niterói, a Hidrelétrica de Itaipu, a Transamazônica e a construção das primeiras usinas nucleares, as Angras), obras que favoreceram amplamente o desvio de verbas públicas e o fortalecimento de empreiteiras graças à influência de grandes empresários junto ao governo militar (CAMPOS, 2012).

No entanto, o projeto civil e militar autoritário foi um fracasso. Os índices econômico-financeiros do final da ditadura demonstram isto: no ano de 1984, a inflação ficou acima dos 200%, a renda per capita não tinha evoluído, a dívida externa elevou-se, chegando a representar mais de 50% do PIB. O número de pessoas extremamente pobres, em 1984, ultrapassou os 25 milhões de brasileiros, maior número considerando a série entre 1964 e 2014. O salário mínimo era um dos mais baixos do período, em torno de 700 reais; em 1964, ultrapassava os 1200 reais (em valores atualizados em real).

Mas, sem dúvida, a herança mais trágica produzida e deixada pela ditadura civil e militar diz respeito à tortura. O Ato Institucional 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, assinado pelo governo Costa e Silva, que vigorou até dezembro de 1978, autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus (CPDOC/AI-5).

No Brasil, 475 pessoas morreram sob tortura ou tiveram suas mortes simuladas por suicídios ou atropelamentos. Pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses da ditadura militar e cerca de 20 mil brasileiros passaram por sessões de tortura. Além disso, existem 7.367 acusados e 10.034 atingidos na fase de inquérito em 707 processos judiciais por crime contra a segurança nacional, sem falar nas milhares de prisões políticas não registradas, nas quatro condenações à pena de morte (AI-14), nos aproximadamente 130 banidos e nos 4.862 cassados.

O AI-5 oficializou e tornou prática corrente entre os diversos órgãos de repressão e informação da ditadura (CIE, CENIMAR, CISA, DOPS, DOI-CODI, Operação Bandeirantes etc.) a arbitrariedade, através do uso da violência e da tortura, estabelecendo um Estado criminoso, que, ironicamente, considerava todo o brasileiro suspeito, até que se provasse o contrário, invertendo um dos princípios fundamentais do Estado de direito: todos são inocentes até que se prove o contrário.

O poder de investigar, reprimir, julgar e executar a pena, dado aos órgãos repressivos, foi responsável pela formação de grupo paramilitares formados por policiais que começaram a prestar serviço para os negócios mais rentáveis do mundo do crime, especialmente o jogo do bico. Um dos mais conhecidos grupos foi o Esquadrão Le Cocq, formado por policiais escolhidos, à época, pelo próprio secretário de Segurança do Rio, Luís França, que incentivava as execuções praticadas pelo grupo. O símbolo do Esquadrão era uma caveira sobre ossos cruzados. A forma de ação do grupo estaria na origem dos Esquadrões da Morte e mais recentemente das milícias.

Em 28 de agosto de 1979, no governo João Figueiredo, já nos estertores da ditadura, entrou em vigor a Lei da Anistia, que valeu para aqueles acusados de crime político, crime eleitoral, que tiveram seus direitos políticos suspensos ou que foram atingidos pelos Atos Institucionais. Mas a Lei de Anistia guardava um aspecto profundamente polêmico, a anistia aos agentes do Estado que praticaram crimes e tortura.

Em razão da Lei de Anistia, o Estado brasileiro foi condenado duas vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA): em dezembro de 2010, o tribunal condenou o Brasil por unanimidade pelas ações do estado na guerrilha do Araguaia nos anos 1970, afirmando que a Lei da Anistia impedia investigações e punições contra graves violações de direitos humanos, indo contra o direito internacional. Em julho de 2018, também por unanimidade, a corte condenou o estado brasileiro pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e disse que a Lei da Anistia não isenta o Estado brasileiro de investigar o crime.

Além disso, segundo o Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários da ONU (Organização das Nações Unidas), leis de anistia como a brasileira são ilegais mesmo quando foram aprovadas em referendo ou consultas populares. Em 2002, com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), finalmente a tortura passou a ser considerada um crime imprescritível contra a humanidade, finalizando debates que ocorriam desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945).

É importante lembrar que, no processo de transição do fim de diversas ditaduras latino-americanas e estabelecimento de democracias, de intensidades variadas, a brasileira não puniu nenhum torturador e outros agentes do Estado responsáveis por crimes, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, na Argentina. Tal situação reforçou a ideia de impunidade, dando péssimos sinais de como seria frágil o processo de redemocratização brasileira (aliás, quando se fala de uma “ditadura derrotada” existem sérias dúvidas sobre a dimensão desta “derrota”). 

No atual governo, a ditadura, a tortura e os torturadores têm sido festejados. Nas manifestações do presidente da República, o notório torturador coronel Brilhante Ustra (ex-chefe do DOI-CODI do II Exército entre 1970 e 1974) é considerado um herói nacional, pouco importando o seu passado criminoso. Estranhamente, a apologia a crimes hediondos e imprescritíveis não tem gerado constrangimentos de nenhuma ordem e tem, ao que parece, juntado mais seguidores em torno do presidente. Exemplos de manifestações desta natureza e suas consequências não faltam na recente história do século XX. São sintomas de uma sociedade que precisa ser tratada.

Referências:

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

STARLING, Heloisa. Moralismo capenga. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ed. 42, março de 2009.

STARLING, Heloísa. Órgãos de informação e repressão da ditadura. Disponível em: https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/2-orgaos-de-informacao-e-repressao-da-ditadura/. Acesso em: 28/03/2022.

Olímpio Mourão Filho. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/olimpio_mourao_filho. Acesso em: 18/03/2022.

Conheça dez histórias de corrupção durante a ditadura militar. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/04/01/conheca-dez-historias-de-corrupcao-durante-a-ditadura-militar.htm. Acesso em: 21/03/2022.

Indicadores econômicos da ditadura militar. Disponível em: https://apps.gazetadopovo.com.br/ger-app-webservice/webservices/iframeHttps/codigo/3374. Acesso em: 21/03/2022.

O AI-5. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5. Acesso em: 21/03/2022.

Corrupção: regimes ditatoriais favorecem a corrupção. Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/corrupcao/. Acesso em: 21/03/2022.

Mortos e desaparecidos: contextualização. Disponível em: http://www4.pucsp.br/comissaodaverdade/mortos-e-desaparecidos-contextualizacao.html. Acesso em:  27/03/2022.

As duas mortes que deram início ao grupo de extermínio Scuderie Le Cocq, no Rio. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/os-dois-assassinatos-que-deram-inicio-ao-grupo-de-exterminio-scuderie-le-cocq-ha-55-anos.html. Acesso em: 28/03/2022.