Carta pública ao iniciante

Elisa Zwick

 Texto escrito por ocasião do retorno às atividades presenciais na Universidade depois do período de isolamento provocado pela pandemia de Covid-19, alusivo à recepção aos estudantes e calouros no campus  Varginha.

Escrevo essa carta pensando em alguns recados para você, que inicia um importante ciclo de estudos nesta universidade pública sul mineira, a UNIFAL-MG. Embora o destinatário direto dessas linhas seja você, graduando, o conteúdo se estende a toda pessoa que estuda e inicia algo, visto a motivação geral aqui expressa ser a do pensar sobre os processos da vida e suas etapas integrantes. Trata-se de pensar, principalmente, sobre desafios de começos e fins, sobre o refazer-se, o renascer e o construir à vida o seu melhor sentido.

Penso que recados são mensagens que deveriam ser ditas aos seus destinatários, preferencialmente olhando nos seus olhos, falando diretamente à alma que reside em seu corpo. E que eles devem estar imbuídos da mais pura sinceridade e empatia em relação à condição do outro. Se preenchem alguma condição que falta para o incremento da outra vida em relação à realização que busca é porque o emissor cumpriu importante função de elaborar uma parte do que chamamos condição humana, sustentando à vida alguma riqueza.

A oralidade foi a primeira prática de comunicação existente entre as pessoas. Se a humanidade está sob a terra há cerca de dois milhões e meio de anos e o desenvolvimento dos primeiros indícios de escrita data de cerca de pouco mais de dez mil anos, a vida humana galgou grande parte de sua trajetória por meio da comunicação oral. O especial protagonismo dessa habilidade influenciou os seres humanos de modo muito singular e o registro escrito é apenas uma pequena centelha das etapas evolutivas de nossa espécie. Não fosse isso, provavelmente a sua geração, caro iniciante, não teria a chance de conhecer muito do verde amazônico sob a terra, pois mais árvores nativas já seriam celulose há muito tempo.

Mas no contexto de avanço da escrita, o envio de correspondências, as cartas, agora já se tornaram inusuais em seu primeiro formato, embora ainda tenham sido algo contemporâneo a muitos. Nossa, quando será que chega a resposta daquela amiga? A nova lição daquele curso por correspondência? A sonhada declaração de amor, expressa em um desenho de coração disforme? Aliás, muitos aqui hoje são frutos do emprego dessa tecnologia, esforçadamente usada por vossos pais em tempos de amor sólido, dando início a relações frequentemente mais duradoras que este amor líquido de hoje, que carrega sérios indícios de já ter avançado ao estado gasoso. É em homenagem a muitas dessas histórias do estado sólido, em especial àquelas que tiveram frutos como você, que faço jus ao recurso da carta neste momento.

Pois bem, além da comunicação via cartas, salvo minha memória estar equivocada por reflexo da pandemia, os humanos inventaram, depois do telégrafo, o telefone. Foi um significativo passo evolutivo acelerador da comunicação. No Brasil, o chamado orelhão consolidou-se como o primeiro modo mais popular da conversa oral entre distantes. Quem nunca enfrentou a famosa fila de espera para o uso das cabines telefônicas? Mas que pergunta desnecessária a você que hoje ingressa na universidade, não é mesmo?!! Há tempos já “viramos essa chave” e a personalização desse meio povoa os bolsos, ocasionando um sério efeito colateral de esvaziamento de almas.

Mas, você sabe sobre importantes usos da comunicação elementar à distância, mais precisamente do “Código Morse”, contemporâneo do telégrafo? Pois bem, como tantas outras tecnologias, esse modo de comunicação fez parte dos chamados tempos de exceção. Refiro-me a momentos em que não vivemos na normalidade, cujos exemplos mais conhecidos são as guerras, onde comunicar-se ou não poder fazê-lo poderia definir a distância entre viver ou morrer, entre vencer ou perder. Também integram esse rol acontecimentos como o que agora presenciamos, não sendo uma pandemia algo inédito se lembrarmos da catástrofe que foi a gripe espanhola. Aliás, quem dera termos herdado de lá avanços sobre a importância das vacinas, não é mesmo?

Aqui registro o meu primeiro recado e, talvez, motivação mais genuína dessa carta: você está na universidade para estudar ciência, não para corroborar opiniões do whatsapp, facebook, telegram, instagram, tiktok ou similares. Existe uma distância abissal entre ciência e opinião. Para ter uma opinião você não precisa estudar, somente acreditar em algo que algum qualquer sujeito, de quem você não sabe a formação, tenha lhe dito. A força da convicção, muito comum de ser apreendida na chamada brincadeira de telefone sem fio da pré-escola não raro é a tônica da opinião. Ainda lembra dessa brincadeira ou também é muito antiga para você? Enfim, o princípio está compreendido. E, para ter uma posição você precisa ler muitos livros da sua área, comprovar hipóteses ou refutá-las. Posição é algo sério. Dá muito, mas muito trabalho mesmo, construir uma posição, pois ela é galgada aos poucos sob as provas que unimos, feito um quebra-cabeças e que, ao final, nos fornece a imagem mais precisa que nosso empenho pode alcançar. Então, construa a sua posição científica com sabedoria e honestidade! E nunca, mas nunquinha mesmo, confunda opinião com posicionamento científico, pois este último é fruto de pesquisa, o primeiro de aleatoriedade e pode ser fruto da mais pura má fé.

Enfim, é nos tempos de aperto, os quais inevitavelmente experimentamos hoje sob diferentes facetas, que se desdobraram novos conhecimentos científicos, que integram também habilidades para saber o que e quando expressar-se. Vejam como a comunicação é um engendramento cultural que nos permite bem viver, gerenciar conflitos, mas também pode despertar desarmonia, adentrar no caos, se lhe vemos sendo desenvolvida pelo oposto. Aqui introduzo meu segundo recado a você, iniciante na arte de viver na academia: estabeleça comunicação clara com seus professores e coparticipes em sala de aula. O primeiro dia de aula é fatal. Faça todas as perguntas possíveis sobre como irá acontecer a disciplina descrita no plano de ensino: como serão as avaliações, como será registrada a presença, quais são os prazos a cumprir, qual o momento da aula destinado às dúvidas, etc. Já adianto que, sim, um bom estudante sempre vem com as perguntas oriundas do texto lido ou atividade feita previamente à aula para realizá-las no devido momento, este acordado com o professor. Então, neste recado acrescenta-se: quem pergunta aprende, especialmente se a sua pergunta está embasada no texto lido ou na atividade feita previamente. Ascender a esse nível como estudante lhe elevará a exemplar aprendiz, o seu estudo fluirá e, assim, serás um sério candidato a um diploma universitário. E este não é um papel qualquer, pelo menos não deveria ser.

Passadas as duas guerras mais recentes vivenciadas pela humanidade, a bonança que emergiu na tentativa de apagar os traços do passado nefasto e inaugurar um estágio considerado o mais avançado a que a humanidade pode galgar é que, finalmente, inventou-se o aparelho celular. E quem não tem um nessa universidade, corre o risco de ser postado ao lado do ET de Varginha, a fazer companhia a este ser “não terreno”, representante de todo tipo de esquisitice e depósito do nosso mais profundo e insano medo: o medo do desconhecido, o medo do diferente. Sim, não ter o que todos têm, não ser o que todos são é algo tão contraditório quanto objeto de medo nesse mundo padronizado. Por isso, meu próximo e terceiro recado vai nesse sentido: tenha medo do medo! Ele fabrica autocracias, é combustível dos déspotas. Você irá entender do que falo, especialmente se enveredar aos – não raro condenados inúteis – estudos qualitativos, de caráter social e crítico, que mostram o medo como um eficiente recurso de manipulação em massa e exercício da barbárie. Poderá defrontar-se com pensadores como Bertold Brecht e sua poesia “Os medos do governo”, que em uma parte diz: “um viajante estrangeiro, que havia voltado do Terceiro Reich, interrogado sobre quem realmente mandava lá, respondeu: o temor (…). E é por medo que queimam bibliotecas inteiras. Assim, o temor domina não apenas os dominados, mas também os dominadores”[1].

A comunicação nos níveis de hoje canaliza o medo para determinados fins. Contraditoriamente, promete ruído zero e ser rápida. Condena a morosidade com que a faziam nossos velhos avós no passado, não raro levando-os a serem deixados nesse tempo. Um efeito colateral, já que celulares são achados que melhor cabem à juventude, não é mesmo? Se achas que sim, é pré-conceito seu, pois celulares cabem a quem pode pagar por eles e têm o devido capital – em sentido financeiro, social e cultural – para possuí-los e apreender sobre seu funcionamento. E se seu avô não possui um é porque não está de posse devida de algum ou de nenhum desses capitais. E acaso você também não o tenha, é porque está mais perto da condição do seu avô do que pensa e voltamos a considerar sua postagem com o ET, tipicamente feita por aquele colega engraçado ou por aquele que quer lhe inferiorizar. Aliás, nesse espaço em que você ingressa agora, nunca se canse de refutar essa segunda opção. E esse é o quarto recado que lhe dou: não aceite ser inferiorizado por quem não conhece a sua história, nem por quem a conhece, pois isso seria bem pior. A sua trajetória é única e se, por alguma circunstância da vida, sua condição de não possuir ou conhecer algo, ou o fato de não concordar com o posicionamento de outra pessoa ou grupo lhe faz diferente, isso precisa ser respeitado, não ser motivo para lhe inferiorizar ou gerar ofensas.

Hoje utilizam-se celulares de modo praticamente ensandecido. Em seus inúmeros aplicativos, alguns permitem até mesmo acelerar o tempo da escuta de uma mensagem, correspondendo à exigência da pressa, sempre presente em tudo o que nos é demandado. Ah, essa tal de pressa, atuando sem cessar, a nos impor uma pressão desmedida e nos fazendo perseguir a tal de “produção” e um tal de “resultado”! Essas demandas exigem frequentemente registros numéricos de eficiência em quadros ou tabelas, numa tentativa de ajustamento das variáveis e dinâmicas a padrões pré-estabelecidos, chegando ao ponto de uma necessidade individual se tornar indecifrável, inexplicável, até mesmo indizível.

Nos moldes dessa pressa contemporânea, a reboque de todos os seus problemas, fabricou-se muita informação às redes sociais que exigem processamento. Parte dela é de qualidade carente de cientificidade e outra parte distante da verdade. São dois quesitos que se complementam e têm tornado a vida humana distante de sentido, perdida de sua essência. Pensando na pressa sendo servida como o prato principal no Menu do cardápio hodierno dedico meu último e quinto recado a você: não podemos querer resultados diferentes ao futuro com as mesmas práticas do passado; portanto, não tenha pressa, pois já vimos o quão imperfeitos são os resultados sob o seu comando. Respeite as etapas de sua formação, pois o melhor desse caminho não é o ponto de chegada, mas o percurso que lhe trará uma coleção de pequenas vitórias até alcançar seu diploma.

Pois bem, aqui estamos e lhe destinei alguns recados que pareceram importantes para a construção do seu percurso na universidade. E você precisa começar por algum lugar, sobretudo por escolher um lado. Sim, a ciência tem lados, não é neutra. Às vezes lutamos por coisas que nos consomem, mas elas são as únicas que dão sentido à vida. Acreditamos na justiça e ela se mostra injusta, acreditamos no amor e ele se mostra indiferente, acreditamos na honestidade e ela tampouco se apresenta. O que resta às almas inquietas nesse mundo diante de tantas incoerências emanadas do outro, esse ser imprevisível, muitas vezes insensível? Que sejamos resistentes! E em meio ao que acreditamos, cuja ciência aqui na universidade nos trará os caminhos à uma convicção esclarecida, o importante é que nosso posicionamento seja o de melhora da vida humana. E deixar a marca do que fizemos de construtivo pelo caminho percorrido, sem disso esperar qualquer reconhecimento imediato. Ele poderá até mesmo nunca chegar ou só nos ser concedido quando não mais estivermos aqui. Independente disso, traçar um caminho autêntico é desafio que desejo que realizes com a maior leveza possível e que seus resultados apareçam devidamente impressos nas entrelinhas do seu diploma: as relações construídas para além dos livros.

 

Que muitos livros sejam lidos

Que os fatos não sejam esquecidos

Que os pobres não sejam distorcidos

Que boatos não sejam ouvidos

Que sejam armas à ignorância

Que de armas letais promovam distância

Que à história deem correta relevância

Que guardem os registros da infância

Que sejam capazes impedir muros

Que tenham versos que não sejam duros

Que impeçam líderes obscuros

Que valham ser descritos, não imaturos

Este é o sonho de todo professor

Seja ele ou não doutor

Que em todo aquele que se torna leitor

Desperte a vida, desabroche feito flor

 

[1]Die Ängste des Regimes: Ein fremder Reisender, aus dem Dritten Reich zurückgekehrt und befragt, wer dort in Wahrheit herrsche, antwortete: die Furcht. (…) Und Angst ist es Die ganze Bibliotheken verbrennen läßt. So Beherrscht die Furcht nicht nur die Beherrschten, sondern auch Die Herrschenden“. Disponível em: http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/09/os-medos-do-governo-b-brecht.html. Acesso em: 20.05.2022.