Um exame e os debates públicos

Marta Gouveia de Oliveira Rovai
Kenia Erica Gusmão Medeiros

  

Em meio a demandas dos movimentos sociais por direitos identitários, e também pelo reconhecimento de sua história e memória, o principal exame do nível médio no país foi criado para romper com visões restritas e elitistas de seleção e foi baseado em construções histórico-culturais contrárias ao sexismo, à lgbtfobia e ao racismo – marcas da sociedade brasileira.

Gêneros e sexualidades

Demandas por reconhecimento de direitos e também de danos históricos impulsionaram os debates sobre gênero, sexismo e racismo no Brasil. Desde o período de redemocratização, nos anos 1970 e 1980, os feminismos tiveram importante papel para a abertura de fissuras na hegemonia social baseada numa interpretação tradicional e dominante das diferenças sexuais. As primeiras reivindicações e lutas feministas estiveram em estreita relação com o contexto de resistência à ditadura militar (1964-1984), porém, nas últimas décadas, ampliaram agendas, categorias e sujeitas, voltando-se a demandas sobre corpos, identidades, sexualidades, violências de gênero, trabalho, masculinidades e pautas LGBTQIA+.

Nos últimos anos do século XX e primeiros do século XXI, a sociedade brasileira ainda buscava acomodar um novo imaginário social, no qual as sexualidades e os gêneros passaram a ser pensados dentro dos debates acerca dos direitos humanos. Para Sérgio Carrara, as últimas décadas do século XX marcaram a emergência de um novo regime de sexualidade, por meio do deslocamento da hegemonia discursiva do campo biomédico para o campo da cidadania e dos direitos civis.[1] No Brasil, isso se refletiu na criação de políticas públicas voltadas às mulheres e à população LGBTQIA+ a partir dos anos 2000.

Em contraposição a esse cenário, atrelado ao campo dos direitos humanos, grupos neoconservadores, liderados sobretudo por figuras religiosas e políticas, disseminaram um pânico moral[2] por meio da “denúncia” de uma suposta ideologia de gênero realizada nas instituições de ensino, capaz de destruir a família tradicional. De acordo com Kênia Medeiros, no que se refere às escolas, essa discussão adquiriu proporções alargadas que, inclusive, têm provocado repressão e interferências no direito legítimo e assegurado por lei de liberdade de ensino.[3]

Embora esta tensão política tenha se intensificado no atual momento de fundamentalismo político, em que nossos valores democráticos têm sofrido ataques e temas como gênero e direitos humanos têm sido excluídos dos documentos curriculares oficiais, podemos encontrar frestas na elaboração de mecanismos de uma “política de direitos”, presente nas instituições de ensino, construída em diálogos e ações que vão além das escolas e se concretizam na relação com a sociedade, nas parcerias e colaborações entre laboratórios de pesquisa ligados à história pública e às demandas de ensino e dos movimentos sociais.

Nesse sentido, as questões elaboradas para o exame de estudantes da educação básica são expressões de um debate público preocupado com a defesa dos direitos humanos de mulheres e da população LGBTQIA+.

Breve histórico do Enem

Criado em 1998, o Enem passou por várias transformações. Atualmente, o Enem é elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e é o principal meio de acesso ao ensino superior no país. A nota obtida no exame pode ser utilizada para a entrada em cursos de universidades e institutos federais no Brasil, em algumas instituições estrangeiras e também para contratos de financiamento estudantil.

Com o crescimento do número de inscritos, principalmente advindos de escolas públicas e política de cotas, a partir de 2009, serve como substituto de muitos vestibulares. Além disso, as provas passaram a demonstrar crescente vinculação com questões sociais e culturais da sociedade contemporânea, principalmente entre os anos 2010 e 2018, período em que identificamos a ocorrência de questões relacionadas aos feminismos e grupos LGBTQIA+, que provocaram debates públicos acalorados.

Fig. 1 Brasília – Participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
 
Feminismos e comunidade LGBTQIA+ no Enem

Devido ao pequeno espaço deste artigo, não é possível reproduzir aqui as questões do Enem. O aspecto fundamental é mostrar seu potencial na publicização de histórias, sujeitos e problemas, de forma a visibilizar demandas sociais por meio do exame divulgado e debatido por mídias digitais, e fortalecer um trabalho e um movimento de colaboração entre historiadores/as preocupados/as em produzir uma história que sensibiliza, provoca e critica visões hegemônicas.

Em 2010, a prova de Ciências humanas e suas tecnologias trouxe uma questão que discutia a homofobia, provocando estudantes a refletirem sobre a historicidade de práticas discriminatórias, presentes, inclusive, no discurso religioso. A questão apresentou um pequeno texto para reflexão relativo à visão da Inquisição acerca do relacionamento entre pessoas do mesmo gênero.

Outro texto trazia um trecho do Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais em 2009, revelando um alto número de pessoas mortas no Brasil por homofobia. Ainda em 2010, a prova trouxe uma questão com um relato sobre a discriminação nos EUA e a vivência de uma cidadania incompleta para pessoas LGBTIA+. Todas elas rompiam com certo silenciamento histórico sobre as violências físicas e simbólicas contra essa população e pediam posicionamento crítico dos discentes.

Discussão de movimentos de igualdade

Em 2013, uma charge do ano de 1934 fazia referência à conquista de direitos pelas mulheres em relação aos mundos do trabalho. Em 2015, uma questão trouxe como texto de apoio um trecho do livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, iniciado pela frase que se tornou uma máxima feminista: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, para tratar do movimento pela igualdade de gênero nos anos 1960.

Em 2016, uma questão apresentava uma propaganda de 1968, na qual uma mulher vestida com roupa espacial segurava um produto de limpeza, vinculada a comentários machistas feitos na internet, após o anúncio da escolha de 50% de uma nova equipe da NASA ser composta por mulheres. O incômodo provocado por vozes do feminismo, questionadores da naturalização da hierarquia de gênero e do patriarcado gerou discussões em diferentes mídias e espaços públicos como a internet, canais de TV, instituições de ensino e no Congresso; debates em que historiadores/as estiveram presentes.

Fig. 2. São Paulo – Brasil, Concentrações de várias pessoas na Parada Gay e LGBT

Em 2017, uma questão teve a boneca Barbie como tema para discussões sobre padrões de beleza impostos pelas sociedades contemporâneas. Na mesma edição, uma questão fez referência à campanha mundial de combate à violência doméstica contra a mulher e outra convidava ao questionamento da padronização feminina por meio da imagem de Maria Bonita, com seu traje de cangaceira, e por uma releitura feita pela estilista Zuzu Angel nos anos 1960.

Em 2018, o convite à reflexão foi feito por meio de uma notícia sobre um concurso de Miss no Peru, no qual as candidatas apresentavam dados sobre a violência de gênero no país e não suas medidas estéticas. Ainda nesse ano, um poema crítico a discursos machistas que expressavam julgamentos de mulheres em função da forma de se vestir além de uma peça publicitária de combate à violência contra a mulher expressavam formas diferentes de opressão de gênero.

Uma questão, em especial, levantou debates e escancarou posicionamentos conservadores na defesa da manutenção da invisibilidade de determinados grupos: um texto sobre o Pajubá, um dialeto criado pela comunidade LGBTQIA+ na ditadura e de apropriação da cultura iorubá e nagô, foi mote de discussão. A reflexão sobre essa linguagem contemplou e legitimou a diversidade da comunicação que se manifesta em nossa sociedade, respeitando identidades e histórias dissonantes da norma, apesar dos setores reacionários, e é produto de um processo dialógico e engajado entre Academia e movimentos sociais.

Uma prova pública que provoca debates públicos

Sem espaço para tornar mais clara a amplitude e a riqueza de discussões públicas geradas pelo Enem, intencionamos evidenciar o posicionamento político de intelectuais e coletivos envolvidos na sua elaboração, compreendendo a potencialidade de seus efeitos para além da seleção de candidatos ao ingresso no ensino superior.

A importância democrática do exame é combatida pelos setores fundamentalistas que tentaram restringi-lo e até eliminá-lo nos últimos anos, evidenciando seu “perigo” para a ordem hegemônica. Como apontou Fernando Nicolazzi,[4] a prática da história pública pode se realizar em diferentes espaços, produzindo ouvintes para debates necessários. Nesse caso, trata-se de um público anônimo e amplo, mas fundamental para o confronto político: ao produzir visibilidade para grupos que sofrem com a discriminação e a violência de gênero, o Enem tornou-se instrumento pedagógico de caráter coletivo e colaborativo, posicionado pela democracia num contexto de intolerâncias e conservadorismos.

A nosso ver, em seu caráter político, mesmo em seu limite seletivo, o exame atendeu a demandas e produziu diálogos e enfrentamentos, assumindo uma importante função social na denúncia de violações e no reconhecimento de direitos, pois promoveu o direito ao questionamento de padrões hegemônicos, parcerias entre pesquisa, docência e comunidades e aprendizado para toda a sociedade.


Leitura adicional
  • Carrara, Sérgio, Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015.
  • Miskolci, Richard, and Campana, Maximiliano, “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, set./dez., 2017.
  • Medeiros,  Kenia Erica Gusmão, História das relações de gênero no ensino de história: reflexões sobre o entrecruzamento dos campos. In: Maciel, David; Duarte, Luiz Sérgio. (Org.). História e ensino de história hoje: uma defesa. Jundiaí: Paco Editorial, 2022, p. 75-97.
Recursos da web

[1] Sérgio Carrara, “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”, in Mana, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015.
[2] Richard Miskolci, Maximiliano Campana, “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo,” Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, set./dez., 2017.
[3] Kenia Erica Gusmão Medeiros, “História das relações de gênero no ensino de história: reflexões sobre o entrecruzamento dos campos,” in História e ensino de história hoje: uma defesa, ed. David Maciel, Luiz Sérgio Duarte (Jundiaí: Paco Editorial, 2022), 75-97.
[4] Fernando Nicolazzi. “Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história e história pública”, in Revista História Hoje, v. 8, n. 15, 2019, 203–22. https://doi.org/10.20949/rhhj.v8i15.525.


Créditos da imagem

Imagem de título: Brasília – Portões são abertos para o segundo dia do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2017, © Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Fig. 1 Brasília – Participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ©  Wilson DiasABr
Fig. 2. São Paulo Brazil, Concentrações de várias pessoas na Parada Gay e LGBT, © Ilton Rogério

Citação recomendada

de Oliveira Rovai, Marta Gouveia, Kenia Erica Gusmão Medeiros: Um exame e os debates públicos. In: Public History Weekly 10 (2022) 8, DOI: dx.doi.org/10.1515/phw-2022-20737.

Responsabilidade editorial

* Publicado originalmente na Public History Weekly Open Peer Review Journal, em 8 de outubro de 2022, neste link. O periódico é uma revista acadêmica aberta e revisada por pares sobre todos os aspectos da história pública, dirigida a um público mais amplo para popularizar pesquisas e debates acadêmicos.