Jogo eletrônico Never Alone (Kisima Inŋitchuŋa), por Walter Francisco Figueiredo Lowande

Eu descobri o videogame Never Alone (Kisima Inŋitchuŋa) quando li o livro Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene (Duke University Press, Durham, 2016), de Donna J. Haraway. Por isso, acho importante também começar aqui pela história que nos é contada por ela, pois foi o seu livro que me permitiu compreender o valor desse jogo que é, também, uma verdadeira obra de arte.

Haraway, que é Distinguished Professor Emerita do Departamento de História da Consciência da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, iniciou sua vida acadêmica como bióloga, tornou-se uma voz importante do pensamento feminista e hoje se dedica a refletir sobre o que podemos fazer em relação à descoberta de que vivemos em uma zona crítica do planeta Terra extremamente sensível ao modo de vida moderno. Haraway se refere ao amplo consenso produzido no campo das ciências do Sistema Terra segundo o qual já vivemos em uma nova época geológica, hoje conhecida como “Antropoceno”. Esse nome, que significa “a nova época do humano”, se deve ao fato de que os impactos produzidos pela sociedade de consumo atingiram uma escala de amplitude geológica, alterando diretamente os ciclos biofísicos do planeta dos quais dependemos ao longo dos últimos 12 mil anos para prosperarmos como espécie. Desse modo, cai por terra, literalmente, o mito iluminista segundo o qual teríamos uma natureza infinita à disposição do progresso civilizacional.

Haraway tem se dedicado, portanto, a imaginar formas alternativas de vivermos em um planeta finito e que se comporta de maneira cada vez mais imprevisível. Uma de suas apostas reside nas histórias contadas por comunidades que, de uma forma ou de outra, continuaram vivendo à margem das relações destrutivas de consumo que caracterizam a sociedade moderna, ainda que essas relações lhes tenham sido impostas ao longo de séculos por diferentes formas de colonização e expropriação. Haraway valoriza essas histórias como patrimônios que nos ensinam a perceber o mundo de uma maneira diferente. Elas nos falam de condições de habitabilidade que são construídas no tempo a partir de conexões inusitadas e estabelecidas entre diferentes tipos de seres.

Histórias ancestrais como essas têm antecipado aquelas que agora nos são contadas pelas ciências do Sistema Terra. Essas experiências “extramodernas”, organizadas em ricos sistemas de conhecimento que o racionalismo ocidental tem desprezado como “mitos” e “superstições”, têm, há milênios, insistido naquilo que a mais avançada modelagem computacional começou a descobrir apenas a partir da década de 1970: que o frágil equilíbrio biogeofísico que deu margem à vida no planeta foi constituído por uma longa “geo-história”, em que diferentes moléculas, bactérias, fungos, plantas, animais vertebrados e invertebrados etc. foram, aos poucos, descobrindo como podiam construir, juntos, as condições ótimas para se reproduzirem. De acordo com Haraway, é justamente essa habilidade de perceber o mundo ao nosso redor que precisamos reconstituir se quisermos sobreviver ao Antropoceno.

Partindo dessas ideias, o jogo Never Alone pode ser considerado uma experiência inspiradora por dois motivos. Por um lado, ele comunica de maneira brilhante uma dessas narrativas em que seres humanos e não humanos são protagonistas de uma mesma história de sobrevivência. Por outro lado, ele nos conta uma história paralela, sobre como a produção artística pode construir conexões inusitadas em torno de um problema compartilhado e que só pode ser solucionado por meio de muita imaginação.

Never Alone nos aproxima de um conjunto de narrativas orais dos Iñupiat (povo indígena habitante da região do Alaska, nos Estados Unidos), que foram reunidas por Robert Nasruk Cleveland no livro Stories of the Black River People (Unipchaanich imagluktugmiut). A história do jogo é a seguinte: uma nevasca eterna ameaça acabar com todas as formas de vida conhecidas, e uma jovem garotinha Iñupiat sai a procura da origem desse problema junto com uma raposa do ártico que lhe faz companhia. Ao longo dessa jornada surgem inúmeros desafios que essas duas personagens precisam resolver juntas se quiserem sobreviver. Para lidar com os efeitos catastróficos dessa transformação que alterou o comportamento de todo o mundo conhecido pela menina, ela e sua companheira podem ainda contar com a ajuda de espíritos capazes de animar as coisas que são encontradas pelo caminho, as quais precisam ser agenciadas de maneira criativa para que o destino da aventura possa ser alcançado.

Trata-se de um jogo de “plataforma de quebra-cabeça atmosférico” dentro das classificações cada vez mais complexas da indústria dos jogos eletrônicos, que há um bom tempo já ultrapassou a indústria cinematográfica e fonográfica em termos de movimentação de recursos financeiros. Nele, jogadoras e jogadores podem jogar sozinhos(as) ou em parceria, controlando tanto as ações da menina quanto da raposa, cujas habilidades são distintas uma da outra e complementares entre si. Como recompensa pelos desafios ultrapassados, o jogo desbloqueia vídeos que nos permitem conhecer mais de perto o universo (ou a “cosmologia”) Iñupiat. Assim como nas obras de David Kopenawa (A queda do céu) e Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo), aos poucos vamos percebendo o quão familiar é essa história, a princípio distante, para a qual as ações humanas estão diretamente conectadas a um conjunto de seres que conformam nossas subjetividades e que, em meio a essas relações multiespécies, agem diretamente sobre o mundo no qual habitamos. Trabalhos recentes de antropólogos como Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro também têm nos mostrado como essas cosmologias “animistas” antecipam em muito as conclusões apresentadas pelas ciências do Sistema Terra de que as ações humanas provocam reações inusitadas da biosfera, e que, portanto, seres não humanos também são dotados de agência.

O aquecimento global é a transformação climática análoga que vivemos concretamente no presente. As cosmologias Iñupiat, Yanomami, Krenak e tantas outras nos ensinam que é preciso negociar constantemente as condições de nossa existência com seres que o tempo todo podem nos devorar. A sociedade moderna se esqueceu dessa sabedoria milenar e, ao invés de compor com esses seres, decidiu destruí-los para transformá-los em mercadoria. Muitos apostam que mais desenvolvimento tecnológico pode ser a solução para a situação paradoxal em que vivemos, ou seja, a aceleração do progresso que nos levou, ao contrário do que imaginávamos, ao potencial fim de nossa própria existência — algo que pode acontecer dentro de apenas mais algumas gerações. Outros já desistiram da Terra e apostam que o incremento de sua exploração (isto é, de seus humanos e não humanos) possibilitará a uma pequena parcela de privilegiados ao menos colonizarem outros planetas. O que os povos extra-modernos sabem, pois a colonização europeia já lhes impôs os fins de seus mundos desde o início da invasão de seus continentes, é que ainda há tempo de vivermos bem neste planeta mesmo. Para isso precisamos compreender que, em termos de nossa geo-história, não há privilégio ou excepcionalidade alguma na condição humana — com exceção de sua capacidade de destruir o único planeta que ela pode habitar.

Outro aspecto interessante desse jogo é que ele foi produzido diretamente pelos próprios Iñupiat, a partir de uma ampla colaboração entre a E-Line Media e o Cook Inlet Tribal Council. Essa foi uma forma de colaboração pioneira, em que protagonismo dessa comunidade foi respeitado no que diz respeito às histórias a serem contadas e ao modo como isso poderia ser revertido em benefícios para sua própria coletividade. Essa forma inovadora de produção de jogos eletrônicos já rendeu à equipe diversos prêmios, como o British Academy Award pela melhor estreia, o de Jogo do Ano e de Maior Impacto da organização Games for Change, ambos em 2015, além de diversas outras indicações. Mas o que o jogo Never Alone nos mostra é que, independentemente do suporte, a produção artística é uma forma de conectar mundos muito diferentes entre si a fim de imaginarmos soluções para problemas compartilhados, sem, com isso, reduzirmos as diferenças que nos constituem.

Onde encontrar:
PlayStation Store, Plataforma Steam e Xbox