Desigualdade escancarada: aspectos sociais, econômicos e ambientais no terceiro ano da pandemia do Coronavírus

Ana Paula Silva dos Santos
Fernando Batista Pereira 

 

Não bastasse as mais de 5,8 milhões de mortes (dados do Our World in Data) ocorridas desde o final de 2019, a atual pandemia do coronavírus vem provocando também a acentuação da desigualdade em suas múltiplas dimensões, a partir de um quadro pré-pandêmico que já não era dos mais favoráveis.

Segundo estudo da Oxfam (2022), um novo bilionário surge a cada 26 horas neste período de pandemia, ao passo que, em igual período, uma pessoa morre a cada quatro segundos em decorrência da contribuição da desigualdade. A riqueza das dez pessoas mais ricas do mundo dobrou, enquanto a renda de 99% da humanidade decaiu, em razão da Covid-19. Só o aumento da riqueza, neste período, de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo em 2021, seria capaz de pagar a vacinação segura de todas as 7,8 bilhões de pessoas do globo. Resultado disso é a maior expansão nas fortunas bilionárias já registrada na história.

No que se refere à vacinação, os monopólios detidos pela Pfizer, BioNTech e Moderna criaram cinco novos bilionários durante a pandemia, permitindo a geração de um lucro de mais de US$ 1.000 por segundo (OXFAM, 2021). Ainda que os números de vacinação tenham aumentado em todo o mundo, menos de 1% das vacinas de tais corporações chegaram às pessoas que vivem em países de baixa renda. Nosso sistema econômico global é, portanto, mais competente na criação de novos bilionários da vacina do que, de fato,  em vacinar as pessoas.

Na saúde, é estimado que 5,6 milhões morrem por ano pela falta de acesso ao atendimento em países pobres – número próximo à quantidade de vítimas fatais do coronavírus desde 2019, já apontado acima. De acordo com o G1 (2020), em São Paulo, a população das áreas mais nobres tem expectativa de vida 14 anos superior ao daquelas que vivem nas áreas mais pobres. Soma-se à falta de acesso à saúde básica, os números alarmantes da fome: a fome mata mais de 2,1 milhões de pessoas por ano, segundo estimativa conservadora por parte da Oxfam. No Brasil, segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (2021), mais de 116,8 milhões de brasileiros conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020 e mais de 19 milhões deles passaram fome[1] (quem não se lembra das cenas chocantes de pessoas disputando ou aguardando doação ossos para alimentação em 2021?). As projeções do Banco Mundial demonstram que é provável que os níveis de pobreza não retornarão aos patamares pré-crise mesmo em 2030.

No que diz respeito à igualdade de gênero, a pandemia atrasou simplesmente mais 36 anos o objetivo de atingir a paridade de gênero. Antes da crise ocasionada pela pandemia, essa estimativa era de 99 anos, atingindo agora 135 anos, segundo o Global Gender Gap Report (2021). A problemática fica ainda pior ao se analisar que, em muitos países, as mulheres têm sofrido mais com a violência de gênero (HARVEY, 2021) e com a sobrecarga de trabalho não remunerado (UN, 2021). Além disso, mais de 20 milhões de meninas correm o risco de nunca mais voltarem à escola (OXFAM, 2022), acrescido da estimativa de que o período de lockdown ocasionará um aumento de 20% da violência de gênero, ou seja, num período de três meses de lockdown, prevê-se um acréscimo de 15 milhões de casos de violência.

Já sobre os aspectos ambientais, o Oxfam (2022) aponta que países ricos são responsáveis por cerca de 92% de todas as emissões históricas excedentes, ao passo que impulsionam a crise climática atual, com as emissões dos 1% mais ricos correspondendo ao dobro das emissões dos 50% da base da humanidade combinada. Pesquisas recentes da Oxfam evidenciam que, até 2030, as pegadas de carbono dos 1% mais ricos serão 30 vezes maiores do que o nível compatível com a meta do Acordo de Paris. Em decorrência disso, em 2030, a crise climática pode matar 231 mil pessoas por ano em países pobres.

Parte da solução em enfrentar tamanha desigualdade é reaver a riqueza extrema (dos denominados 1% ou 0,1% mais ricos) para a economia real, das pessoas (os 99%), além de redirecionar essa riqueza para salvar vidas e investir em nosso futuro. Para isso, é fundamental alterar as regras do sistema global e mudar a atual estrutura de poder, extremamente concentrada na economia e na sociedade. Vale ressaltar que apenas soluções sistêmicas – como um sistema tributário efetivamente progressivo, que tribute os extremamente ricos e gere capacidade de financiamento de políticas públicas comprovadas para a população em geral – servirão para combater a violência econômica enraizada, estabelecendo fundamentos para um mundo mais igualitário.

 

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NUTRIÇÃO. Inquérito Nacional na pandemia aponta pico epidêmico da fome. Disponível em: <https://www.asbran.org.br/noticias/inquerito-nacional-na-pandemia-aponta-pico-epidemico-da-fome>. Acesso em: 24 jan. 2022.

OUR WORLD IN DATA. Covid deaths. Disponível em: <https://ourworldindata.org/covid-deaths>. Acesso em: 24 jan. 2022.

OXFAM (2022). A desigualdade mata. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/a-desigualdade-mata/>. Acesso em: 24 jan. 2022.

OXFAM (2021). Pfizer, BioNTech and Moderna making $1,000 profit every second while world’s poorest countries remain largely unvaccinated. Disponível em: <oxfam.org/en/press-releases/pfizer-biontech-and-moderna-making-1000-profit-every-second-while-worlds-poorest>. Acesso em: 24 jan. 2022.

ROWAN HARVEY (2021). La pandemia ignorada: la doble crisis de la violencia de género y la Covid-19. Disponível em: <https://www.oxfam.org/es/informes/la-pandemia-ignorada>. Acesso em: 24 jan. 2022.

UN WOMEN (2021). Global gender response tracker: Monitoring how women’s needs are being met by pandemic responses. Disponível em: <https://data.unwomen.org/resources/women-have-been-hit-hard-pandemic-how-government-response-measuring>. Acesso em: 24 jan. 2022.

WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2021. Disponível em: <https://www.weforum.org/reports/global-gender-gap-report-2021>. Acesso em: 24 jan. 2022.

YONZAN, Nishant;  LAKNER, Christoph; MAHLER, Daniel Gerszon. Is COVID-19 increasing global inequality? Disponível em: <https://blogs.worldbank.org/opendata/covid-19-increasing-global-inequality>. Acesso em: 24 jan. 2022.

 

[1] Tal número equivale, hoje, à população da cidade de São Paulo somada à população da cidade do Rio de Janeiro.