Afinal, o que seria “Dia do Índio”? Em entrevista, professor da UNIFAL-MG fala sobre significados atrelados à data e destaca protagonismo, direitos e lutas de povos indígenas

A data de 19/04 ficou popularmente conhecida como “Dia do Índio”. Pensando nisso, a Diretoria de Comunicação Social entrevistou o etnólogo e professor Danilo Paiva Ramos, do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG, para elucidar história, dados e lutas relacionadas aos povos indígenas. Na entrevista, fala-se a respeito de proteção a territórios, culturas e vidas, assim como dos direitos à educação, no que se refere ao acesso ao ensino superior, e à saúde, com dados sobre o enfrentamento da pandemia de covid-19 pelas populações. Confira: 

Por que a data em homenagem aos povos indígenas é comemorada em 19/04? Quais significados estão atrelados a esse dia? 

Prof. Danilo Paiva Ramos: A celebração do Dia do Índio (19 de abril) foi instituída pelo decreto-lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas. A data fora escolhida pelo fato de o primeiro Congresso Indigenista Interamericano, voltado à definição de políticas públicas específicas, ter ocorrido no México em 19 de abril 1940. Apesar do marcante sentido político inicial, o Dia do Índio foi incorporado aos calendários escolares tendo difundido uma imagem estereotipada, folclorizada e em tudo distante das lutas por direitos, culturas e histórias indígenas. Silenciando as vozes indígenas, o Dia do Índio serviu como estratégia do Estado Brasileiro de apagamento dos crimes praticados contra essas populações, os quais envolvem desde a omissão e racismo até o genocídio, que perdura desde o início da invasão dos colonizadores europeus.

Desde 2004, com a realização do primeiro Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília, o mês de abril passou a ser marcado por mobilizações, manifestações e eventos que reúnem por vezes milhares de pessoas indígenas na luta pela efetivação de seus direitos, em busca da visibilidade dos problemas que atingem as populações indígenas, e promoção das culturas, artes, filosofias e saberes indígenas. Com a fundação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em 2005, como resultado do primeiro ATL, passa a ser fundamental que, no diálogo com a sociedade nacional, não apenas o 19 de abril – Dia do Índio seja o momento de mobilização política, mas todo o mês de abril e a agenda de lutas e eventos que são projetados por todo o ano até o próximo abril indígena.

De acordo com conteúdo publicado pelo portal da organização “Instituto Identidades do Brasil”, o termo “índio” é pejorativo e reafirma preconceitos. Como você explica essa colocação, professor? 

Prof. Danilo Paiva Ramos: A população indígena no Brasil congrega, segundo o IBGE (2010), 305 povos diferentes falantes de 180 línguas pertencentes a diferentes famílias linguísticas. Cada um desses povos possui um etnônimo diferente de autodenominação. O termo “índio” constituiu-se historicamente como uma forma de o Estado e a sociedade nacional se referirem a esses povos. Quando o termo “indígena” ou “povo indígena” é utilizado no sentido de apagar a diversidade de povos, culturas e histórias, ele pode sim assumir a conotação negativa e preconceituosa.

“[…] o termo “indígena”, quando utilizado de forma preconceituosa, discriminatória, de modo a negar a diversidade, a humanidade, os direitos e a complexidade dessas centenas de povos, pode sim reafirmar preconceitos”, explica o etnólogo



Por outro lado, muitos movimentos e organizações políticas desses povos autodenominam-se “indígenas”. Atualmente, o principal movimento político desses povos, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), utiliza o termo “indígena” como uma forma de agregar um conjunto heterogêneo de povos, organizações, lutas e histórias. O termo “indígena” assume um sentido positivo de afirmação identitária na luta pela efetivação de direitos específicos. É preciso lembrar que “povos indígenas” e “indígenas” são também termos jurídicos e constitucionais que constituem a forma do Estado Brasileiro referir-se a essa ampla diversidade de povos como sujeitos de direitos – o direito ao território, à saúde e educação específicas, dentre outros.

Assim, o termo “indígena”, quando utilizado de forma preconceituosa, discriminatória, de modo a negar a diversidade, a humanidade, os direitos e a complexidade dessas centenas de povos, pode sim reafirmar preconceitos. Por outro lado, quando se trata do uso do termo “indígena” como autoidentificação das pessoas, povos, movimentos étnico-políticos em diálogo com o Estado e em meio à luta pela efetivação dos direitos específicos, essa palavra ganha sentidos positivos e se mostra chave para a afirmação dessas populações em confronto com a sociedade nacional.

Em relação à última pergunta, na sua visão como etnólogo, qual a importância de se trazer a temática para o debate público, pensando no combate à discriminação e a ideias pré-concebidas, bem como a todas as formas de violência contra os povos indígenas?

Segundo o Prof. Danilo Paiva Ramos, “(…) resguardar a memória e garantir os direitos dos povos indígenas passa hoje pelo acesso ao ensino superior e pelo fortalecimento dos movimentos e organizações indígenas”. (Foto: Arquivo Pessoal)

Prof. Danilo Paiva Ramos: Os dados do último censo do IBGE (2010) mostram que no estado de Minas Gerais a população indígena é de 31.112 pessoas, divididas em 18 etnias diferentes. Parte dessa população habita as quatro terras indígenas demarcadas, mas a maior parte se encontra fora de suas terras, constituindo suas habitações em áreas de retomada ou nos centros urbanos de Belo Horizonte e Governador Valadares. Em Minas Gerais há dezoito etnias indígenas: Maxakali, Xakriabá, Krenak, Aranã, Mukuriñ, Pataxó, Pataxó hã-hã-hãe, Catu-Awá-Arachás, Kaxixó, Puris, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kiriri, Canoeiros, Kamakã, Karajá, Guarani e Pankararu. Nos centros urbanos como Belo Horizonte e Uberlândia, vivem, além de famílias destas etnias citadas acima, outras tantas famílias de etnias diversas oriundas de todas as regiões do Brasil e de outros países também, como os Warao da Venezuela e Quechua do Peru. As 18 etnias que vivem atualmente no Estado de Minas Gerais são pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê e Tupi-Guarani (Guarani) e contam aproximadamente com 20 mil indivíduos. Há uma grande população de indígenas que vivem nos centros urbanos. Estima-se que na região metropolitana de Belo Horizonte tenha de sete a dez mil indígenas¹. A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME – constitui-se como a principal entidade de representação dos diferentes povos e organizações indígenas do estado. 

Falando em violência, cabe destacar a violência vivenciada pela falta de proteção às terras indígenas. Mesmo sendo garantidos pela Constituição Federal, os territórios sofrem riscos. Quais são eles? 

Prof. Danilo Paiva Ramos: O Relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, de 2020, publicado pelo Conselho Missionário Indigenista, apontou que, mesmo em meio ao enfrentamento da covid-19, houve um aumento grave quanto às invasões de terras indígenas por grileiros, garimpeiros, madeireiros, entre outros. Foram registrados 263 casos de invasões de terras indígenas em 2019, tendo havido um aumento de 137% com relação a 2018. As invasões atingiram, assim, 201 terras indígenas de 145 povos em 19 estados brasileiros. Apenas na terra indígena Yanomami foi registrada a invasão de 20 mil garimpeiros que devastaram o território, foram vetores de contágio de covid-19 e praticaram violências contra pessoas indígenas.

A violência contra os povos indígenas cresce em meio ao aumento da impunidade e à omissão e descaso do governo federal. No lugar de fortalecer as medidas de proteção territorial, ampliar a demarcação de novas terras indígenas e destinar recursos para a implementação de Planos de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas, o governo federal esforça-se para implementar a PL 191/2020, que visa à abertura das terras indígenas para a mineração e exploração de gás, petróleo e construção de hidrelétricas. No mesmo sentido, a IN 09/2020 permite a certificação de propriedades privadas, em benefício de grileiros e fazendeiros, em terras indígenas que estão em processo de demarcação, mas ainda não homologadas.

Dessa forma, os territórios indígenas e as vidas das populações indígenas sofrem risco de forma cada vez mais intensa, o que vem sendo denunciado pela APIB como crimes sistemáticos e prática de genocídio pelo Estado brasileiro contra as populações indígenas. Os dados do CIMI apontam para um crescimento de 174% dos conflitos relativos a direitos territoriais de 2019 para 2020, tendo sido registrados 96 casos. No que diz respeito aos assassinatos de pessoas indígenas, foram 182 assassinatos em 2020, enquanto em 2019 haviam sido registrados 113 casos.

A pandemia afetou diretamente povos indígenas. É possível esboçar a situação vivenciada por eles? Como foi feito o apoio emergencial durante o período de isolamento?

Prof. Danilo Paiva Ramos: Em 22 de janeiro de 2021, a Articula dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) comunicava que haviam sido confirmados 46.508 casos de covid-19, 920 óbitos e 161 povos afetados. Na mesma data, o Boletim Epidemiológico covid-19 da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) reportava 40.611 casos confirmados e 531 óbitos, não havendo o detalhamento quanto aos povos indígenas atingidos pela pandemia. Em 18/01/2022, a mesma APIB registrou 63.380 casos confirmados, 1255 indígenas mortos pela covid-19, 162 povos afetados (APIB). Para o mesmo período, a Sesai registrava 57.483 casos confirmados, 859 óbitos, não havendo dados por povo indígena e nem para a quantidade de povos atingidos.

Num cenário de avanço crescente da doença, que vem levando à morte centenas de pessoas indígenas, a divergência entre os dados oficiais e aqueles produzidos pelo monitoramento de base comunitária dos movimentos indígenas torna-se reveladora de problemas graves enfrentados há décadas na saúde indígena. Dentre esses problemas, pode-se destacar a subnotificação, a falta de confiabilidade e a falta de acesso aos dados epidemiológicos, problemas mais gerais, já apontados pelos conselheiros de saúde e lideranças indígenas nas últimas Conferências Nacionais de Saúde Indígena (CNSI), e que se agravaram com a pandemia.

Diante da omissão do governo brasileiro em garantir a saúde dos povos indígenas no enfrentamento da covid-19, movimentos indígenas como a APIB, APOINME, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), entre outros, realizaram a elaboração de “Planos de Enfrentamento”, boletins e da mobilização de uma rede de monitoramento de casos formada por agentes de saúde, pajés, parteiras e benzedores, conselheiros de saúde, estudantes e professores indígenas, e profissionais de saúde. Além disso, os advogados indígenas da APIB denunciaram a omissão sistemática em saúde do governo brasileiro através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental N. 709 (ADPF 709).

Como resguardar a memória e garantir os direitos dos povos indígenas? 

Prof. Danilo Paiva Ramos: O protagonismo e a força demonstrados através da mobilização indígena e denúncia das omissões em saúde e práticas genocidas do Estado Brasileiro através da ADPF 709, por exemplo, mostra que é o fortalecimento dos movimentos e organizações indígenas que consolidará os caminhos para “resguardar a memória e garantir os direitos dos povos indígenas”. Nesse sentido, a afirmação indígena nas universidades cumpre um papel fundamental.

Conforme afirma o professor Danilo Paiva Ramos, resguardar a memória e garantir os direitos dos povos indígenas passa hoje pelo acesso ao ensino superior e pelo fortalecimento dos movimentos e organizações indígenas.

Juristas como Luis Eloy Terena, advogado e antropólogo, liderança pela APIB, e Joênia Wapichana, senadora e advogada, mostram como é fundamental a formação de profissionais indígenas no ensino superior para a luta pela garantia de direitos e denúncia das violências sofridas pelos povos indígenas. O enfrentamento e combate da covid-19 pelos povos indígenas teve como grandes protagonistas profissionais de saúde indígenas médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes de saúde que, ao lado de pajés, parteiras, benzedores, realizaram monitoramentos epidemiológicos, barreiras sanitárias e exerceram o controle social em saúde intensamente.

Assim, resguardar a memória e garantir os direitos dos povos indígenas passa hoje pelo acesso ao ensino superior e pelo fortalecimento dos movimentos e organizações indígenas. A atuação dos profissionais indígenas ao lado das lideranças comunitárias e tradicionais será, a meu ver, a chave a garantia de direitos nas lutas que estão por vir.

Que papel social as universidades assumem nessa luta?

Prof. Danilo Paiva Ramos: O acesso à educação superior por parte da população indígena representa uma importante conquista histórica que vem se ampliando ao longo da última década e impactando positivamente no que diz respeito à formação profissionais e ao acesso aos direitos sociais e indígenas. Segundo Gersem Baniwa, nas últimas décadas, os movimentos indígenas têm pressionado cada vez mais o Estado para que haja a implementação de políticas de Ações Afirmativas que ajudem a “combater a histórica exclusão, e desigualdade social, econômica e política” (2013, p. 18). Promulgada em 2012 pela presidenta da república, a lei n° 12.711/2012 (Lei de Cotas Sociais) estabeleceu a obrigatoriedade da reserva de vagas nas Universidades e Institutos federais para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, estudantes de famílias de baixa renda, e estudantes autodeclarados negros, pardos e índios. Entretanto, para a efetividade da política, é preciso que as instituições e ensino superior implementem ações que garantam o acesso e a permanência desses estudantes pertencentes a grupos sociais excluídos e com grau intenso de vulnerabilidade social.

Atualmente, a população indígena gerencia 13% do território nacional, chegando esse percentual a 23% no território amazônico. O acesso ao ensino superior corresponde à possibilidade de maior condição à cidadania plena e de diálogo com o Estado e sociedade nacional quanto aos interesses comuns indígenas e aqueles do país (LUCIANO, G. Revista Fórum, 2013). Segundo Luciano (2013), um dos desafios para as IES está não só em garantir o acesso da população indígena ao ensino superior, mas também em permitir a circulação e validação dos saberes indígenas baseados em outras cosmologias, filosofias e epistemologias, distintas do modo como se constituem os saberes acadêmicos voltados à universalização, ao mercado e ao individualismo. Assim como os demais direitos indígenas, também a educação é considerada por esses povos como um direito coletivo, sendo que o acesso de cada estudante é visto também como um acesso de toda a comunidade indígena, e não apenas do indivíduo. Os processos educativos dos povos indígenas são distintos daqueles do ensino formal nacional, e deve-se ter em conta suas diferentes línguas e formas de ensino e aprendizagem ao buscar estratégias e ações para o acesso dessas populações à universidade. Além disso, a escola básica cursada pelos estudantes indígenas é, geralmente, baseada nos princípios da educação especial e diferenciada, que garante o aprendizado bilíngue, o currículo diferenciado e a interculturalidade.

Desse modo, são fundamentais ações de promoção da equidade educacional, valorizando os conhecimentos, línguas e saberes indígenas, ao mesmo tempo que promovam uma maior simetria para os estudantes indígenas quanto aos conhecimentos de base dominados pelos estudantes não indígenas. Nesse sentido, programas de acompanhamento e tutoria acadêmica vêm sendo fundamentais para o letramento acadêmico, a simetrização de conhecimentos, a interculturalidade e diálogos de saberes, bem como para o acompanhamento das situações específicas de cada estudante. Esses mecanismos, tutoria e acompanhamento, permitem a mediação importante com colegiados de cursos, equipamentos de assistência social e psicológica, e com as próprias famílias e comunidades dos estudantes. Isso se faz necessário, uma vez que o ingresso na vida acadêmica é marcado pela separação familiar, a mudança para municípios distantes, a dependência das políticas de assistência estudantil e auxílio para moradia e alimentação, e pela exposição a práticas de discriminação e racismo.

¹ Referência: CAMARGO, Pablo. Povos indígenas em Minas Gerais. Disponível em: https://www.cedefes.org.br/artigo-povos-indigenas-em-minas-gerais/. Acesso em: 25 de agosto de 2021.