26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura

Vanessa Tavares Dias

Nos idos de 1979, Gilberto Gil lançava uma versão alegórica do reggae No Woman no Cry, do jamaicano Bob Marley. Na versão brasileira, Gil repisa o pedido para a mulher não chorar, a despeito dos “amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”. O artista lembra ainda da presença dos hipócritas disfarçados, rondando ao redor – delatores voluntários, informantes colaboracionistas, censores e toda sorte de cúmplices do aparato repressivo do Estado. Não chore mais traduz as marcas deixadas pela repressão no Cancioneiro Popular; mas, ao mesmo tempo, configura-se um marco histórico da abertura política, quando, enfim, a história recente começava a ser revelada. 

A abertura política, decorrente da Lei da Anistia de 1979, foi marcada por imagens emblemáticas, que ficaram registradas na biografia do país. Os aeroportos ficaram lotados de pessoas para receber em seus braços personalidades que voltavam à pátria-casa, como Fernando Gabeira, Leonel Brizola, Márcio Moreira Alves, Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes. Jornais televisivos mostravam presos políticos sendo libertos das prisões de Recife e de Salvador. Muitos militantes puderam, enfim, voltar para as suas famílias, e as famílias se prepararam para receber os seus amores de volta.  

O momento da abertura, no entanto, perpetuou a agonia de outras tantas famílias, que não tiveram a possibilidade de abraçar os seus entes queridos. A Comissão Nacional da Verdade[1], criada em 2011, durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, reconheceu 434 mortos e desaparecidos por motivos políticos entre 1964 e 1988, sendo que a maior parte foi assassinada no período da ditadura (1964-1985). Entre os mortos e desaparecidos estão estudantes, professores, operários, jornalistas, camponeses e indígenas. Muitos deles morreram nos porões da ditadura após serem barbaramente torturados.

O conhecimento das circunstâncias das mortes de militantes políticos no período da ditadura foi possível por mérito do grandioso projeto Brasil Nunca Mais[2]. O projeto BNM foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo, sob a coordenação do Reverendo Jaime Wright e por Dom Paulo Evaristo Arns. Os coordenadores enviavam padres, diáconos e seminaristas para presídios e outros aparelhos de repressão para atender a presos político, fazer orações ou dar extrema-unção. Durante as visitas, os religiosos, clandestinamente, procuravam os arquivos onde constavam processos judiciais e microfilmavam os documentos antes que pudessem ser destruídos. Os insuspeitos religiosos registraram à época mais de 1 milhão de páginas oficiais dos arquivos militares, que foram sistematizadas em aproximadamente 850 páginas com informações sobre execuções e torturas; mais precisamente 1.800 casos registrados de tortura e informações sobre o desaparecimento de 125 pessoas. 

A tortura sistêmica aplicada pelo Estado brasileiro contra oponentes políticos, durante os vinte anos de ditadura no Brasil, embora tivesse como razão imediata a extração de informações sobre “grupos subversivos”, tinha claramente o objetivo de subjugar oponentes, desumanizá-los, demonstrar poder através do sofrimento do corpo e da mente, além de satisfazer sentimentos bestiais dos torturadores. Não é raro o relato de mulheres que viram seus algozes se masturbando durante as torturas[3]. Há também casos aterrorizantes de torturas psicológicas aplicadas contra crianças[4]. Janaína Teles e seu irmão Edson Teles, que tinham cinco e quatro anos respectivamente, foram levados para ver os seus pais após uma sessão de tortura. Quando chegou à cela, Janaína percebeu que eles não conseguiam se mexer. Com cinco anos, apenas cinco anos, ela perguntou à mãe: “mãe, por que você está azul e o papai está verde?”[5]  

Danilo Carneiro, militante do PCdoB, capturado em 1972, afirmou em seu depoimento à Comissão da Verdade:

“Foi quando me avisaram que, a partir dali, eu iria conversar com quem de fato sabia conversar [interrogar]. Havia 20 torturadores na cela. Me arrebentaram. Encapuzado, eu engolia sangue e desmaiava. Eu só tinha um desejo: morrer, pois não tinha outra saída que não fosse entregar meus companheiros. Tamanho era esse desejo [de morrer] que comecei a dar cabeçadas nas grades de ferro da cela e só não fui em frente porque outro companheiro preso conseguiu me convencer do contrário”[6].

Sônia Moraes Angel Jones era estudante de economia e administração da Universidade Federal do Rio de Janeira. Foi presa em 1973 e levada ao DOI-CODI do II Exército, em São Paulo (SP). Lá foi barbaramente torturada, sendo estuprada com um cassetete que perfurou os seus órgãos internos, levando a uma hemorragia e, consequentemente, à sua morte. Clea Moraes e João Luiz de Moraes, seus pais, receberam em sua residência o cassetete usado na tortura, numa tentativa dos agentes da repressão de estender a brutalidade à família[7].   

A tortura, no entanto, não é um fenômeno criado pelos agentes da ditadura brasileira. Sua existência remonta períodos remotos da história da humanidade, como a Escravidão, a Inquisição e as Guerras Mundiais. O aparato de repressão que nasce a partir de 1964, e que foi consolidado em dezembro de 1968 com o Ato Institucional nº 5, não foi a primeira ocasião do uso sistemático desse mecanismo de desumanização no Brasil. O “pau-de-arara”, método de tortura por meio do qual uma pessoa é colocada de cabeça para baixo durante tempo suficiente para que o sangue pare de circular no corpo, era utilizado pelos senhores de escravos para imobilizar os trabalhadores escravizados[8]. O governo Getúlio Vargas, iniciado posteriormente ao autogolpe de 1937, também fez uso sistemático de torturas[9]. Além disso, a tortura contra presos comuns sempre fez parte da nossa história[10], como mecanismo de opressão contra as chamadas “classe perigosas” – jovens, negros e pobres. Este fenômeno revela que o Estado brasileiro tem autorizado, tolerado ou mesmo praticado por meio de seus agentes públicos tormentos físicos e psicológicos infligidos contra diferentes grupos sociais. 

Em 12 de dezembro de 1997, por meio da resolução 52/149, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 26 de junho como o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Nesse dia, precisamos lembrar que a tortura ainda é uma realidade no Brasil, e continua entranhada na organização do aparelho político, e fora dele, como herança de nossa formação histórica. Citando mais uma vez o compositor brasileiro, na canção Extra, Gilberto Gil suplica: “Eu, tu e todos no mundo/ No fundo/ tememos por nosso futuro/ ET e todos os santos, valei-nos/ Livrai-nos desse tempo escuro”.   

Em comemoração ao dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, gostaria de dedicar esse simplório texto de memória histórica a Danilo Carneiro, que conheci nos anos 90. Danilo tinha visivelmente sequelas da tortura no seu corpo, mas, ainda assim, perseverava na luta contra a brutalidade. Ele faleceu no dia 1 de janeiro de 2022. Danilo, presente, hoje e sempre.    


Bibliografia:

Arquidiocese de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1987.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. 1996 p. – Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 3.

Sônia Morta Viva. Documentário. Direção: Sérgio Waisman. Brasil, 1985.

OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história: a “vitória simbólica” dos vencidos. Artigos. Rev. bras. Ci. Soc. 26 (75). Fev 2011.

PANDOLFI, Dulce Chaves. Censura no Estado Novo. Concinnitas, ano 19, número 33, dezembro de 2018.

[1] Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014. 1996 p. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 3)

[2] Há uma compilação do projeto, realizada pela editora Vozes, chamada Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1987.

[3] Por exemplo, https://operamundi.uol.com.br/memoria/38929/estava-na-cadeira-do-dragao-quando-o-torturador-se-masturbou-e-jogou-esperma-em-mim-relata-ex-presa-politica-da-ditadura.

[4] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/03/31/como-a-ditadura-sequestrou-criancas-e-torturou-familias-inteiras-para-obter-delacoes.htm

[5] “Ela viu a mãe ser torturada na ditadura”.  Breno Damascena. Colaboração para Universa, 10/10/2018. <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/10/10/valorizemos-historia-de-quem-resistiu-diz-filha-de-torturada-na-ditadura.htm>

[6] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-08/comissao-da-verdade-ouve-ex-guerrilheiros-torturados-no-araguaia

[7] Sônia Morta Viva. Documentário. Direção: Sérgio Waisman. Brasil, 1985.  

[8] OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história: a “vitória simbólica” dos vencidos. Artigos. Rev. bras. Ci. Soc. 26 (75). Fev 2011.

[9] PANDOLFI, Dulce Chaves. Censura no Estado Novo. Concinnitas, ano 19, número 33, dezembro de 2018.

[10] OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história: a “vitória simbólica” dos vencidos. Artigos. Rev. bras. Ci. Soc. 26 (75). Fev 2011.