Somente diversão, mas da boa, por Eloésio Paulo

Algum crítico literário dos anos 80 – teria sido José Paulo Paes? – reclamou que faltava literatura de entretenimento no Brasil. Sua tese era que, não havendo leitura por diversão em larga escala, dificilmente se formaria um público suficiente para o florescimento de uma literatura nacional vigorosa. O argumento é bem plausível, e, particularmente no que tange ao romance policial, faz muito sentido. Talvez seja meio óbvio por que não surgiu nenhum John le Carré brasileiro, embora não tenham faltado aspirantes, de Rubem Fonseca a Patrícia Melo.

Os espiões (2009), de Luís Fernando Verissimo, demonstra tanto a tese do crítico quanto a dificuldade de fazer romance policial sério no Brasil. O livro é um pastiche muito divertido, leitura para um dia de praia, no qual entram muitos ingredientes do talento inigualável de Verissimo para a crônica. Há situações engraçadas como a dos fiéis que, ao se confessar a um padre meio surdo, são obrigados a gritar seus pecados, então registrados por quantos estejam na igreja.

O narrador é um sujeito formado em Letras cujo casamento e cuja vida profissional são dois fracassos retumbantes a explicar seu alcoolismo. Ele trabalha numa editora mantida por seu amigo de infância Marcito, um empresário picareta que explora autores desavisados. Tudo permaneceria um tédio em sua vida se um dia, entre os manuscritos que estava encarregado de avaliar, não aparecesse o de uma tal Ariadne, que imediatamente o intriga, levando-o a tecer mil fantasias sobre a possível veracidade do relato e as associações do nome (ou seria pseudônimo?) da autora com episódios da mitologia grega envolvendo Teseu, o Minotauro e Dionísio, o deus da esbórnia (que inclusivos eram os gregos…).

Para entrelaçar coisas tão diferentes como a astrologia e o futebol de salão numa cidadezinha do interior gaúcho, só mesmo a inventiva e a imensa cultura do genial Verissimo. Mas, se seu romance é bastante divertido, falta-lhe, como faltava aos anteriores desde O jardim do diabo (1988), a densidade dos dramas humanos que fez a glória literária de seu pai. Com certeza não é fácil ser filho de Erico Verissimo, a quem, contudo, o humorista supera largamente em muitos aspectos; suas centenas de crônicas são o ápice do gênero, num país que contou com autores como Machado de Assis, Rubem Braga, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Stanislau Ponte Preta… Estão reunidas em dezenas de livros, dos quais os mais brilhantes são O analista de Bagé (1981), um dos maiores bestsellers da literatura brasileira, A mãe do Freud (1985) e O marido do doutor Pompeu (1987).

A curiosidade do narrador a respeito de Ariadne – pela qual, na verdade, se apaixona a distância – leva-o a fazer propaganda do livro que ela dizia escrever em capítulos seriados, os quais seriam remetidos à editora, sendo que o último corresponderia ao suicídio da autora. Outros personagens ligados ao trabalho do narrador ou ao Bar do Espanhol, onde ele costumava embebedar-se, ficam igualmente fascinados pela história e vão parar em Frondosa, burgo imaginário localizado na cratera supostamente causada pela queda de um meteoro.

Ocorre que a Ariadne gaúcha tem seus próprios minotauros, é vigiada dia e noite pelo marido, uma espécie muito tipicamente brasileira de empresário-gângster cujo irmão é prefeito da cidade. O desfecho sangrento envolve um astro local do futebol de salão, apelidado Mandioca, o autor de livros de astrologia Fulvio Edmar e várias outras figuras pouco prováveis, que cabem melhor na ligeireza de uma crônica do que na pretensão à verossimilhança que caracteriza os grandes romances.

Da ligeireza também derivam pequenos cochilos de técnica narrativa e mesmo de gramática – que Verissimo domina tão bem, mas seu fluxo de escrita é febril – não percebidos pelos três revisores que constam na ficha técnica da edição. É isso, revisor no Brasil ganha muito mal, assim como professores. E policiais, claro.

Esses senões não importarão para a maioria dos leitores. Os espiões é diversão garantida, e nele o escritor mostra, uma vez mais, que herdou do pai aquela facilidade para escrever que Monteiro Lobato, em carta ao Verissimo pai, descreveu comparando (no bom sentido) ao prazer de uma descarga fisiológica. A quem estiver procurando uma leitura leve para as férias, indicadíssimo.