“Tentando a subida, desceu”, por Eloésio Paulo sobre o livro “A estrela sobe” de Marques Rebelo

O tema de A estrela sobe (1939) seria bem característico da ficção do século XIX, não fosse pelo detalhe de naquele século ainda não existir o rádio. Leniza, a protagonista de Marques Rebelo, é uma típica heroína oitocentista, se também descontarmos o cenário, que é o Rio de Janeiro dos anos 1930, e a linguagem do narrador e das personagens. O desfecho, um tanto moralista ao fazer a moça sofrer como castigo de seus maus passos, poderia ser assinado por José de Alencar.

Mas há muitas diferenças além do cenário, da época e da linguagem. Alencar nunca chegaria à crueza de certas passagens do relato rebeliano, até sua  prostituta (em Lucíola) é idealizada além da conta. Se bem que o lesbianismo também é meio escamoteado em A estrela sobe.

O maior mérito de Rebelo é atualizar a técnica narrativa do realismo, e nisso chega a superar certos aspectos das obras de Erico Verissimo e Jorge Amado publicadas na mesma época. O narrador, apesar de onisciente, intervém muito pouco no correr da história; os diálogos são ágeis como numa boa peça de teatro ou num filme: informam muita coisa que na ficção oitocentista ficava a cargo dele, narrador. A descrição, igualmente, restringe-se ao mínimo necessário.

O resultado é um livro de leitura fluente, que não se perde em digressões e minúcias ociosas para a compreensão do enredo. A estrela sobe nunca chateia o leitor, exceto talvez pela ausência da continuação suposta pelo final aberto. E ainda tem o saboroso ingrediente de uma linguagem levemente arcaizante, a evidenciar com clareza a herança portuguesa do falar carioca, que, por exemplo, ainda se referia às filas como “bichas”.

Leniza é uma moça do subúrbio. Sua, como se dizia outrora, cabeça oca é facilmente preenchida pela quimera inventada por um dos inquilinos de sua mãe, tocador de violão: que a menina tinha um grande talento musical, que deveria tentar a careira de cantora. Isso num tempo em que o rádio estava apenas começando, as apresentações eram ao vivo, diretamente do estúdio, e raras as gravações – situação de que saíram, parar converter-se em celebridades nacionais, mundial no caso da primeira, Carmen Miranda, as irmãs Batista e Aracy de Almeida.

Insatisfeita com sua condição extremamente modesta, filha única de uma lavadeira que enviuvara muito cedo, Leniza vai na conversa do inquilino e abandona um bom – para sua condição social – emprego, começando a vida “independente” por tornar-se amante de um perverso agenciador de talentos musicais. Dessa primeira queda, logo recompensada pela decepção de que o salário prometido pela emissora de rádio nunca seria pago integralmente, a decadência moral de Leniza se agrava até chegar à pura e simples prostituição. Mas, como diz o título, a estrela sobe, mesmo que seja pouco e bem ao modo daquela Conceição imortalizada por Cauby Peixoto.

Qualquer resumo empobrece demais as qualidades do romance, sobretudo a maestria atingida no andamento narrativo, cheio de marchas e contramarchas sutis; Marques Rebelo tinha um raro senso de ritmo, extremamente atento aos necessários desvios e pausas. Além disso, a psicologia de algumas personagens (outras são tipos, caricaturas bizarras da miséria moral) é cheia de nuances. Dois ótimos exemplos disso são o médico Oliveira, um dos namorados de Leniza, e o gerente de rádio Manuel Porto, terceiro amante da cantora. A protagonista também tem suas hesitações no caminho para a fama, paralelo ao do da decadência moral, mas é dotada de uma ferrenha resolução de “subir” a qualquer preço.

No final das contas, Marques Rebelo dá ao leitor, além de uma história muito bem contada, a imagem bem delineada do fenômeno radiofônico, em suas primeiras décadas, na capital da República. Para quem tem alguma ideia dos caminhos do sucesso na indústria cultural, em qualquer de seus domínios, a vida de Leniza é tão arquetípica como a da Conceição de Cauby, que, “tentando a subida, desceu”, embora seja fato inegável que algumas “estrelas” construídas à base de relações pessoais e propaganda, sendo o talento quase sempre bem secundário, realmente cheguem ao topo da fama e da riqueza. O engraçado é que não poucas se suicidam.

A estrela sobe, por mais que pareça herética a assertiva, é um Balzac muito melhorado.

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