“No mês das mulheres, dê uma chance para Jane Austen desconfortar você”, por Maria Clara Pivato Biajoli

Virginia Woolf escreveu em 1913: “organize os escritores ingleses como quiser, mas não parece possível trazê-los em nenhuma ordem em que ela não esteja em primeiro, ou segundo, ou terceiro lugar, seja quem for seus companheiros.” Quem é ela? A inglesa Jane Austen (1775-1817), falecida um século antes do ensaio de Woolf ser publicado no Times Literary Supplement[1]. Nos países anglófonos, como já previa Woolf, até hoje Austen é lida e ensinada como uma das escritoras mais importantes da literatura de língua inglesa e um nome chave na história do desenvolvimento do romance moderno. Curiosamente, no Brasil, Austen foi emoldurada por outra imagem: a da escritora romântica, cujas histórias sobre mulheres são voltadas para mulheres. Como o subgênero do romance romântico já carrega um estigma negativo de literatura menor lida apenas pelo público feminino, é raro que homens leiam Austen, que assistam os filmes baseados em seus livros, ou que ao menos tenham ouvido falar sobre ela. Eu bem sei. Em 2016, quando ofereci uma disciplina optativa sobre a autora, das quarenta e tantas vagas que foram preenchidas, havia apenas cerca de seis alunos do gênero masculino, que estavam ali ou por causa da conveniência do horário da disciplina, ou, em um caso engraçado, porque o rapaz fora obrigado pela namorada a se matricular. Nenhum tinha um interesse específico em Austen, e a maioria, de fato, nem sabia de quem se tratava.

O problema de se julgar um livro pela capa, ou uma autora pela fama, é que arriscamos perder algo que pode nos surpreender muito. A marca registrada da escrita de Austen, um dos motivos pelo qual ela é eternamente admirada nas universidades estrangeiras, é a ironia de um narrador onisciente afiado e mordaz. Mas é muito difícil ilustrar esse narrador em uma capa, ou incorporá-lo em filmes, e o resultado é que, sem seus comentários cáusticos, acabamos ficando apenas com a história de amor mesmo. Contudo, vejamos uma amostra desse narrador. A abertura de seu romance mais famoso, Orgulho e Preconceito (1813), diz assim: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, de posse de uma vasta fortuna, deve estar precisando de uma esposa. Independentemente dos sentimentos e opiniões de tal homem quando chega pela primeira vez em uma nova vizinhança, essa verdade está tão presente nas mentes das famílias da área que ele é visto como propriedade por direito de uma ou outra de suas filhas.” A genialidade do parágrafo está na inversão de expectativas. Podemos até reforçar a ideia de que o tema do romance é o casamento, mas em quais termos isso está sendo descrito? Observe as palavras que destaquei: “fortuna” e “propriedade”. Agora, procure por palavras como amor e afins: não há. O que o narrador está nos mostrando? Que, nessa sociedade, o casamento é uma transação econômica, e são nesses termos que a história vai se desenrolar. De forma ainda mais irônica, como a trama foca em cinco irmãs sem dote que precisam se casar, esse parágrafo também pode ser lido assim: que é a jovem moça solteira, detentora de pequena ou nenhuma fortuna, que na verdade está precisando de um marido. E todos ali sabem que, sem esse dote, as chances de ela obter um marido são mínimas. O&P fala sobre isso.

Na década de 1930, W. H. Auden escreveu um poema sobre Austen, dizendo: “Eu fico desconfortável ao ver / uma inglesa solteira de classe média / descrever os efeitos amorosos do metal / revelar com tanta franqueza e seriedade / as bases econômicas de nossa sociedade.[2]” Nesse mês das mulheres, recomendo que leiam Orgulho e Preconceito – ou qualquer outro romance de Austen – e permitam-se ficarem desconfortáveis e incomodados com sua obra.

[1] Tradução minha. O texto integral, em inglês, pode ser conferido em: https://www.the-tls.co.uk/articles/jane-austen-woolf-archives/

[2] Peço perdão pela tradução amadora que destruiu a métrica e as rimas de Auden.

Onde encontrar:
Livrarias e sites.