364 Dias Internacionais dos Homens

Fernanda Onuma
Aline Lourenço de Oliveira

“O subalterno como um sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido[i]”, afirmou a intelectual indiana Gayatri Chakravorty Spivak, em seu livro “Pode o subalterno falar?”. As ciências modernas, explica a autora, relegaram aos sujeitos coloniais o lugar do “outro” em relação aos homens europeus, brancos, burgueses, cisgêneros e heterossexuais, cujas falas e ideias são vistas não como perspectivas teóricas, visões possíveis sobre o mundo, mas como “a” ciência, “a” verdadeira visão de mundo, ou melhor, “a” descrição perfeita do mundo em si.

Intelectuais latino-americanos, africanos e das partes empobrecidas da Ásia seriam o “outro”. Apenas visões alternativas que se escutam ou se leem como “curiosidades”, ou, na melhor das hipóteses, “visões alternativas”. Para Gayatri Spivak, as mulheres que habitam estes lugares são o “outro” deste “outro” colonizado. Se os homens destes locais já se sentem marginalizados dentro do mundo eurocêntrico, as mulheres, então, são ainda mais subalternizadas.

Somos mulheres e pesquisadoras brasileiras. Todo ano, vemos que mulheres pesquisadoras, estudiosas e militantes são lembradas, com razão, no dia 8 de março. Quando pensamos nas colegas negras e LGBTQIA+, então, vemos que estas são convocadas a falar e escrever em datas ainda mais invisibilizadas, porque suas imagens e narrativas têm menor potencial mercantil, como ilustram as campanhas publicitárias que costumam anteceder o Dia Internacional das Mulheres. Empresas, governos e outras organizações amam e valorizam mulheres, mas não o suficiente para contratá-las aos cargos mais altos[ii], ou para respeitar seus direitos reprodutivos e maternos[iii].

Tal como ao longo dos demais 364 dias do ano, a UNIFAL-MG nos concedeu um espaço de fala via escrita, cumprindo com seu compromisso institucional em favor da pluralidade. Porém, mais uma vez, nos vemos como privilegiadas. O que se observa, na maioria das vezes, é que mulheres estão presentes nos espaços sociais que lhes são concedidos. Porque ocupar espaços em diferentes organizações, de empresas a partidos políticos, nos quais se tenha voz e se possa participar dos processos decisórios, é algo muito difícil. Tanto é que foi necessário um projeto de lei que determinasse uma porcentagem mínima de mulheres no legislativo brasileiro ou como participantes das eleições e, mesmo assim, recorrentemente, ocorrem denúncias de fraudes[iv]. E, quando uma mulher se sobressai nestes espaços, por sua atuação, suas ideias e representatividade, correm o risco de serem mortas, como aconteceu com a deputada Marielle Franco[v]; sofrem assédio, como o ocorrido com a deputada Isa Penna[vi]; ou têm sua família atacada, como aconteceu com a filha de 5 anos da ex-candidata à presidência do Brasil (2018) Manuela d’Ávila[vii].

E por falar em mães, estas estão constantemente sendo ignoradas e suas lutas romantizadas pelos estereótipos religiosos e midiáticos, segundo os quais devem ser tudo aquilo que não são, silenciando assim a solidão, o sofrimento e a sobrecarga de trabalho físico e mental. O mundo do trabalho trata a maternidade como um problema que impede o desenvolvimento profissional da mulher, quando não a exclui definitivamente, relegando-a à informalidade ou ao desemprego. Se estas mulheres forem negras e/ou LGBTQIA+, recebem um tratamento ainda mais subalternizado socialmente e se tornam alvo de vários tipos de violências, inclusive contra sua integridade física, alimentando, assim, os índices de feminicídio.

A presença de mulheres em alguns contextos, infelizmente, não passa de tentativa de dar a entender que são espaços inclusivos e respeitosos ou até progressistas, quando, na verdade, são espaços de propagação de privilégios masculinos e domínio de machismos velados. Homens antifeministas seguem ocupando espaços privilegiados nas mais diversas organizações, como também nos meios de comunicação em massa e na política, e, assim, eles têm condições de manipular opiniões e tomar decisões contrárias aos interesses das mulheres. Além disso, as conquistas das mulheres são vistas como perdas para eles, e os homens não estão dispostos a abdicar dos seus privilégios patriarcais.

Deste modo, o sexismo e a dominação masculina continuam intactos[viii], e mudar essa situação não depende só da mobilização das mulheres ou do movimento feminista, mas que: a) homens aliados: dirijam-se aos seus pares masculinos e reprimam as manifestações machistas; b) antissexistas acadêmicos: dirijam-se aos seus parceiros de pesquisa e definam suas pautas de trabalho e estudos por meio da crítica e contra o silenciamento das demandas das mulheres.

Antes de acusarem uma mulher de seu convívio de “raivosa”, escute os relatos das microagressões, relacionamentos abusivos, silenciamentos, assédio moral e outras práticas aparentemente sutis de violências que a levaram a uma postura hostil. Somem de fato ao feminismo, este movimento contra violências e que também os beneficia no que concerne à construção de uma sociedade mais justa e igualitária, mas também reprimindo as violências de gênero que os oprimem.

Nem sempre temos o espaço da escrita para tratarmos de forma polida e paciente sobre estes assuntos. Quando o temos, como a UNIFAL-MG nos oferece, tal como Gayatri Spivak já relatou, não temos garantia alguma de que somos lidas, apesar dos esforços institucionais para tal. Por tudo isso, tantas de nós estão esgotadas.

Cansadas de homens que dizem apoiar as causas feministas, mas que fecham seus ouvidos às nossas sugestões, críticas; e também não suportamos mais vermos homens ganhando crédito e reconhecimento por trabalhos de mulheres, como no recente plágio e apagamento sofrido pela Profa. Dra. Valeska Zanello[ix], do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPSICC)/UnB. Usem seus privilégios, sua capacidade de não confundir processos estruturais com individuais (parem com a velha retórica vazia do “mas nem todo homem”) e nos ajudem no diálogo com aqueles que preferem criticar, silenciar, ou, até mesmo, direcionar os rumos de discussões feministas. Afinal, o patriarcado também os atinge, também os mata. Vocês continuarão como as principais vítimas fatais com armas de fogo[x] e no trânsito[xi] enquanto formas tóxicas de masculinidades seguirem orientando suas vidas.

Esperamos que estas palavras e de tantas outras mulheres que estudam as relações de poder mediadas pela categoria de gênero tenham alguma repercussão entre homens e mulheres no dia de hoje. Até lá, exceto em anos bissextos, seguiremos com 364 Dias Internacionais dos Homens.

[i] (SPIVAK1, 2010, p. 163). Referência: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

[ii] CAMPOS, Stela. Barreiras sutis impedem escalada feminina ao topo. Disponível em: <https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/06/28/barreiras-sutis-impedem-escalada-feminina-ao-topo.ghtml>. Acesso em 06 mar. 2022.

[iii] ROCHA, Rosely. Empresas ganham na Justiça direito de não pagar salário maternidade na pandemia. Disponível em: < https://www.cut.org.br/noticias/empresas-ganham-na-justica-direito-de-nao-pagar-salario-maternidade-na-pandemia-6599>. Acesso em 06 mar. 2022.

[iv] RIBEIRO, Letícia de Carvalho Capobianco. Decisões e normas do TSE combatem tentativas de fraude à cota de gênero nas eleições. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/decisoes-e-normas-do-tse-combatem-tentativas-de-fraude-a-cota-de-genero-nas-eleicoes>.Acesso em 07 mar. 2022.

[v] UNIVERSO ON-LINE. Suspeito de matar Marielle diz que Bolsonaro o ajudou em associação. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/03/04/ronnie-lessa-bolsonaro-marielle-entrevista-veja.htm>. Acesso em 07 mar. 2022.

[vi] BLAY, Eva Alterman. Ameaçadas de morte ou os casos de Isa Penna, Márcia Barbosa, Mariana Ferrer e Carolina Soares. Disponível em: < https://jornal.usp.br/artigos/ameacadas-de-morte-ou-os-casos-isa-penna-marcia-barbosa-mariana-ferrer-e-carolina-soares/>. Acesso em 07 mar. 2022.

[vii] CORREIO BRAZILIENSE. Manuela D’Ávilla relata ameaças de estupro contra filha de 5 anos. Disponível em: < https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/06/04/interna_politica,1273618/manuela-d-avilla-relata-ameacas-de-estupro-contra-filha-de-5-anos.shtml>. Acesso em 07 mar. 2022.

[viii] HOOKs, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 4.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

[ix] GARCIA, Gabryella. ‘Sexismo e apagamento’, diz Valeska Zanello, que acusa influencer de plágio.

Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2022/03/sexismo-e-apagamento-diz-valeska-zanello-que-acusa-influencer-de-plagio.html>. Acesso em 06 mar. 2022.

[x]MINISTÉRIO DA SAÚDE. Dados de Morbimortalidade Masculina no Brasil. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/dados_morbimortalidade_masculina_brasil.pdf>. Acesso em 06 mar. 2022.

[xi] Fonte: CONFORT, Maria. Homens lideram mortes no trânsito em todo o país. Por quê? Disponível em: <https://manualdohomemmoderno.com.br/video/comportamento/homens-lideram-mortes-no-transito-em-todo-o-pais-por-que>. Acesso em 06 mar. 2022.