Um “fazendeiro do ar”, por Eloésio Paulo

Francesco Petrarca (1304-1374), um dos grandes escritores renascentistas, queixou-se num poema por sua amada, por ele tornada arquifamosa, não apenas o haver deixado para casar-se com outro, mas ter dado a este “undici figlioli” (onze filhos). Maior razão teria Constança, a prima de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), celebrada pelo poeta em seus sonetos simbolistas, alguns deles merecedores de figurar em qualquer antologia poética brasileira. É que Alphonsus, malogrado seu amor da juventude – Constança morreu aos 18 anos –, casou-se com outra e bateu o recorde de Laura; fez 15 filhos, um dos quais foi o escritor João Alphonsus.

Não se vê, pelo menos no romance Totônio Pacheco, publicado pela primeira vez em 1935, nenhum sinal dessa filiação. Nada ali lembra o pai poeta, apelidado “solitário de Mariana” apesar dessa numerosa coorte filial. Deveria lembrar? Talvez fosse o caso de esperar isso, pois Alphonsus deve ter sido uma figura bastante marcante. Até aqui, só um nariz-de-cera anedótico; tomara que tenha servido de teaser para a leitura do restante.

O protagonista é um fazendeiro do imaginário município de Montanha, mas a maior parte da ação narrativa transcorre em Belo Horizonte, uma Belo Horizonte em construção, ainda com cenários quase rurais, como o córrego a murmurar em plena Rua São Paulo. O enredo é dividido em três partes. Na primeira, o filho do protagonista viaja à fazenda da Grota para visitar a mãe, já moribunda. Junto com ele vai o médico Carmo Peres, que não consegue salvar a velha, mas passa uns dias “ilustrando-se” a respeito da vida na fazenda. Aí começa a destacar-se o maior talento do ficcionista, a habilidade de caracterizar cenários e espalhar neles personagens bastante diversos. Outro, não menos importante, é o registro de expressões regionais do tipo de “ruim como carne de pá” e “Vai assombrar porco!”. Nesse ponto, o velho Totônio é apenas um fazendeirão bronco (por isso mesmo, interessante), endinheirado e sem nenhuma empatia com o filho, que o acha antiquado e até lhe tem um pouco de vergonha.

Na segunda parte é que fica evidente: Totônio será o protagonista. Mas não em suas imensas terras que são uma espécie de feudo, e sim na capital mineira, onde passa a morar com o filho, um advogado em ascensão. Não fica muito bem explicado por que o velho, tão apegado à vida na fazenda, acedera em vender a propriedade; aliás, vários elementos não ficam muito bem explicados, e nesse ponto começamos a achar talvez um pouco exagerados os elogios que o romance recebeu de intelectuais como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura. As reputações literárias, como de resto todas as outras, têm muitas vezes componentes de interesse ou amizade, e com esses senhores João Alphonsus tinha ambas as ligações, sendo o principal interesse comum entre eles a tarefa de modernizar a literatura – no caso, a mineira, com quem Bandeira teve um conhecido namoro, mesmo sendo pernambucano-carioca, a ponto de imortalizar certo “leproso de Pouso Alto”, provavelmente conhecido em visita a Ribeiro Couto, num de seus mais belos poemas.

Totônio Pacheco tenta ambientar-se naquela Belo Horizonte primordial, logo fazendo amizade com o mestre de obras Bellino, um imigrante italiano, personagem que merecia maior desenvolvimento: daria vazão à veia cômica do escritor, um tanto contida pela tragédia em surdina que ele tem em mira. Mas o “coronel”, como é estranhamente chamado pela gente da cidade (pois ali se reduzia a um idoso desterrado, apesar de ter os bolsos forrados), não consegue nem mesmo comprar um chapéu adequado às novas roupas que o filho lhe impusera como mais adequadas a sua posição social. Dinheiro não lhe falta, embora nunca saibamos quanto valeu a parte das terras que lhe coube – pois a maior parcela vinha da herança de sua defunta “Ciana”, redução de Prudenciana.

Sem conseguir ambientar-se na casa do filho, pouco à vontade com a vida inativa na capital, de repente lhe baixa um tardio impulso perverso que se manifesta em duas ocasiões. Primeiro, passa uma cantada na copeira da família, sendo devidamente ridicularizado como don-juan de 71 anos, ainda por cima quase banguela; depois, sem motivo visível na economia do relato, aplica um enérgico beliscão no traseiro de Myrtes, a devota e celibatária cunhada do filho, que por sinal estivera bastante dedicada a salvar-lhe a alma. Totônio se revela, em suma, o impenitente filho de seu pai, reeditando o antigo pai-de-chiqueiro que fizera tantos filhos “naturais” em empregadas de sua propriedade, a perpetuar, sancionado pela inércia social brasileira, os “direitos” feudais do senhor de escravos.

Essa parte do romance é fechada com uma aventura no bordel, pois o impulso serôdio de estroinice em Totônio toma a forma de uma vida noturna que se prolongará pelo restante da narrativa. Na terceira parte, ele se amasia com uma prostituta apelidada Coló, abandonando a casa do filho, para a qual só retornará pouco antes de morrer.

Falta algo nessa história. Faltam algos, na verdade. Há muitas pontas soltas no relato. O narrador, por exemplo, esquece completamente a copeira caluniada por Totônio, presa como ladra de umas camisas que o próprio velho escondera. Também Coló desaparece depois de ter um piripaque aparentemente espírita no quarto de outra prostituta, a qual havia sido assassinada pelo amante. O médico Carmo Peres, por sua vez, comparece em dissertações meio fora de lugar, dominado por um enorme complexo devido à condição de mestiço. São pedaços que não se encaixam muito bem ao todo. Apesar disso, Totônio Pacheco segue sendo melhor do que muitos romances mais coerentes em termos de verossimilhança psicológica. Longe, porém de ser uma obra-prima; o melhor de João Alphonsus são os contos.

Onde encontrar:
Livrarias e sebos