Sobre vetores do feminicídio

Fernanda Onuma
Aline Lourenço de Oliveira

Com muito pesar, soubemos recentemente pela imprensa que, mais uma vez, um cidadão varginhense assassinou sua ex-namorada[i]. Este triste caso ganhou espaço midiático não apenas em nossa região, mas em todo o país[ii]. Certamente, você teve conhecimento do caso. Nesta ocasião, que mensagem você percebeu que foi transmitida? Que ideias, você ou pessoas do seu convívio, saíram “passando para frente” seja a respeito deste, bem como de outros casos de feminicídio?

A professora Valeska Zanello, da Universidade de Brasília, propõe uma reflexão interessante ao discutir sobre feminicídio e outras formas de violências contra mulheres[iii]. Quando se tem um problema social de largo alcance, como uma epidemia de dengue, a propaganda para conscientização e erradicação da doença não se volta às comunidades atingidas, mas, sim, a formas de se conter o avanço do vetor, aquele que causa a doença: o mosquito Aedes aegypti. Contudo, no quinto país em que mais se comete feminicídio no planeta, como aponta a autora, campanhas de conscientização, tanto públicas quanto feitas pela iniciativa privada, privilegiam mensagens voltadas às mulheres: são estas que devem denunciar, identificar relações abusivas, evitar determinados comportamentos…

Inspiradas na reflexão proposta pela professora Zanello, queremos lembrar que, vivendo em sociedade, como pessoas civilizadas e sendo o feminicídio um problema social, ele afeta todas as pessoas, mesmo aqueles que não conseguem enxergar sua colaboração em episódios tão dramáticos como o da jovem varginhense brutalmente assassinada pelo ex-namorado.

A exemplo do mosquito Aedes aegypti, que, se contaminado pelos vírus correspondente, pode transmitir a dengue, a febre amarela urbana, a zika e a chikungunya[iv], o que uma mensagem misógina, mesmo que disfarçada de suposta “brincadeira”, pode transmitir em uma sociedade já marcada pela estrutura patriarcal? Ainda que não disparem uma arma de fogo contra uma mulher, as pessoas que reproduzem piadas machistas (homens sãos melhores), reforçam estereótipos de gênero (mulher é fraca e precisa de um homem ao seu lado) ou tecnologias de gênero (existem coisas de menino e coisas de menina), agem como “vetores” da misoginia, reforçam a ideia de inferioridade e descartabilidade feminina que colabora para que alguns se sintam no “direito” de assassinar uma mulher que termina um relacionamento dito “amoroso”.

O que precisa ficar claro é que a responsabilidade por conter os índices de feminicídio, impedindo que mulheres sejam mortas, é de toda a sociedade[v]. Homens e mulheres precisam se informar e se tornarem conscientes de sua parcela de culpa quando são omissos diante de manifestações de violência contra a mulher, quando reproduzem piadas, comentários que as diminuem e apoiam a manutenção de comportamentos que são desrespeitosos, abusivos, agressivos para com elas, ou ainda, conseguem justificar a estrutura de desigualdade e opressão em vez de lutar contra suas diversas manifestações. Diante de tantos casos não é admissível que alguém ainda diga “isso não existe”, “mulheres querem privilégios”, “nem todo homem”. Porque, quando se consegue encontrar conforto nesse tipo de pensamento e conviver com mulheres morrendo por motivos banais, como o rompimento de um relacionamento, suas mãos ficam sujas de sangue inocente como as do assassino.

O que se tem feito até o momento, de enfrentamento da violência contra as mulheres, em grande parte é jogar a responsabilidade de denunciar e impedir o avanço do machismo nas nossas mãos. As mulheres precisam estudar, entender, debater, informar, educar os outros, denunciar e lutar contra tudo que as mata. E temos feito isso! São muitas as mulheres que vem liderando frentes de contenção dessa doença social, mas esse problema não é só de algumas, não pode ser! Assim como se combate a propagação dos vetores de outras doenças, é preciso ampliar as frentes de ação, cobrar que todos assumam suas responsabilidades e mudem comportamentos[vi].

A começar por rechaçar manchetes do tipo “Mulher é morta..”, pois, assim, banalizam o fato. Perceba como a frase é construída: quem é seu sujeito, quem fez a ação? Essa voz passiva, da “mulher” que “foi morta”, não indica a autoria do crime. Fica parecendo que a “mulher” sofreu uma ação quase que “sem autoria”, ou da qual só ela participou: ela “foi morta”, não se menciona quem a matou. O que a repetição desta ideia implícita nas manchetes, milhões de vezes, ao longo de muitos anos, nos diz a respeito de uma sociedade que lê, atônita, ou indiferente, títulos de notícias que se iniciam assim[vii]? Por que não lemos, nem escutamos com mais frequência, que “ex-companheiro é suspeito de assassinar…”? Porque ela ilustra a persistente tendência de culpabilização da vítima, ou seja, a mulher fez alguma coisa para merecer tal fim.

Manchetes não determinam comportamentos: são apenas um indício de ideias e práticas que circulam e se realizam em uma sociedade. Estas representações, segundo Teresa Laurentis[viii], se tornam reais quando são internalizadas e passam a compor a subjetividade social, tomando a aparência de autorrepresentação. Ou seja, o cinema, a literatura, os jornais, a televisão, a escola, a religião, a família, dentre outras fontes de produção de significados sociais, produzem representações que são tomadas pelas pessoas como realidade. Logo, a naturalização da morte de mulheres, sem atribuir responsabilidade aos culpados, reproduz a ideia de que mulheres podem morrer e que, certamente, elas fizeram alguma coisa para merecer este fim. Deste modo, não há comoção social suficiente para mover a estrutura de poder e criar novas ideias e significados capazes de erradicar as violências contra mulheres e sua manifestação máxima que é o feminicídio.

Nesta linha de raciocínio, também é urgente romper com o dispositivo amoroso que condiciona as mulheres a buscarem relacionamentos corrosivos. A professora Valeska Zanello desenvolve este raciocínio explicando que dispositivo amoroso[ix] é uma “forma de amar” que vulnerabiliza as mulheres, pois elas buscam se tornar interessantes, serem escolhidas e validadas pelos homens para o afeto, para serem “assumidas” para as outras pessoas. O que ela quer dizer é que mulheres “se colocam na prateleira do amor”, como se estivessem à disposição para serem nomeadas por seus aspectos físicos e morais. Esta crença é muito prejudicial. Primeiro, pelo sofrimento emocional respaldado na comparação, competição e rivalidade entre mulheres; segundo, pelas agressões que seus corpos suportam na busca pelos atributos físicos perfeitos e atrativos aos olhos masculinos; em terceiro lugar, pela mágoa e tristeza que decorrem de não serem escolhidas. O dispositivo amoroso gera sofrimento e faz com que mulheres suportem abusos ao limite.

Os vetores de propagação do feminicídio, que precisam ser contidos com grande ímpeto, são ideias e práticas difundidos na sociedade, e que tanto conseguem justificar e naturalizar a morte de mulheres, manter as pessoas indiferentes e omissas diante dos casos, como levar mulheres a se sujeitarem a fazerem de tudo para estarem com homens que podem matá-las após uma embriaguez qualquer ou por não suportarem sua autonomia e emancipação. Essa luta é difícil porque a manutenção desta estrutura que subjuga as mulheres beneficia o sistema capitalista na exploração da vida e do trabalho reprodutivo realizado por elas. Neste embate pela vida de mulheres, que papel você tem assumido? Tem atuado em prol da mudança de comportamentos violentos contra mulheres ou como mais um vetor do feminicídio?

 

Agradecimentos

Agradecemos à Profa. Dra. Cilene Margarete Pereira pela revisão do texto e pelo incentivo à sua realização.


[i] SOARES, Lucas; ARAÚJO, Thayná; NUNES, Luana. Jovem de 24 anos é morta com tiro no peito pelo ex-namorado em Varginha, MG. Disponível em: <https://www.band.uol.com.br/minas-gerais/noticias/musa-do-cruzeiro-e-assassinada-a-tiros-pelo-ex-namorado-em-varginha-16514870>. Acesso em 13 jun. 2022.

[ii] ALVIM, Isabella. Musa do Cruzeiro é enterrada após ser assassinada a tiros pelo ex-namorado. Disponível em: <https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2022/05/30/mulher-e-morta-a-tiros-pelo-ex-namorado-em-varginha-mg.ghtml>. Acesso em 13 jun. 2022.

[iii] ZANELLO, Valeska. Masculinidades, cumplicidade e misoginia na “Casa dos Homens”: um estudo sobre os grupos de Whatsapp masculinos no Brasil. In: FERREIRA, Larissa (Org.). Gênero em perspectiva. Curitiba: Editora CRV, 2020. p. 79-102.

[iv] BRUNA VARELLA, Maria Helena. Doenças transmitidas por Aedes aegypti e Aedes albopictus. Disponível em: < https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/doencas-transmitidas-por-aedes-aegypti-e-aedes-albopictus/>. Acesso em 13 jun. 2022.

[v] COSTA, Letícia Ferreira; GONÇALVES, Jonas Rodrigo. Feminicídio: sob a banalização das mortes violentas por razões de gênero e seus desafios diários. Revista Processus de Estudos de Gestão, Jurí­dicos e Financeiros, [S.l.], v. 12, n. 42, p. 34-52, maio 2021. 

[vi] LABRUNA, F. Notas sobre feminicídio. LIBERTAS: Revista de Ciências Sociais Aplicadas, v. 11, n. 2, p. 38-49, 17 dez. 2021.

[vii] ROSSI, Túlio Cunha. O discurso de amor na violência contra mulheres: análise sociológica de “Quem matou Eloá”. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online]. 2020, v. 35, n. 102 [Acessado 14 Junho 2022], e3510220. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/3510220/2020>. Epub 03 Fev 2020. ISSN 1806-9053. https://doi.org/10.1590/3510220/2020.

[viii] LAURENTIS, T. DE; SILVA, G. B. V. DA; SOUZA, L. L. DE. Gênero e teoria Queer. Albuquerque: Revista de História, v. 13, n. 26, p. 165-176, 28 dez. 2021.

[ix] ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. 1.ed. Curitiba: Appris, 2018. 301p.