O zênite de Graciliano, por Eloésio Paulo

Infância (1945) é, em geral, considerado um livro de memórias. Mas essa catalogação plana deixa de observar várias pistas de propósito incluídas nele, como a declaração de que o menino Graciliano muito cedo ganhou “afeição às mentiras impressas”. O volume é dividido em capítulos intitulados um pouco à maneira de Vidas secas; no início do terceiro deles, “Verão”, o narrador confessa que suas memórias são confundidas pelo tempo e define o parentesco que elas têm com a ficção: “O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade.”

A relação entre memória e ficção, aliás de mão dupla na maioria dos casos, persistirá intrigante ao longo do livro, que se inicia por uma concatenação de fragmentos na qual já se delineia a situação do menino oprimido pelos pais, especialmente a mãe, que, mesquinha e enfezada, “considerava-me uma besta”. E o garoto que se tornaria um dos maiores escritores brasileiros, quem diria, aos nove anos ainda não sabia ler, até porque achava não haver no mundo “prisão pior do que uma escola primária do interior”.

Bem ao contrário de Raul Pompeia, Graciliano não guardou o mínimo vestígio daquela “saudade hipócrita” dos seus dias de menino. A imagem que ele constrói em Infância é de desamparo e violência, não há sinal da “estufa de carinho que é o regime do amor doméstico” a que se refere o narrador de O Ateneu. “Um cinturão”, o quarto capítulo, explica bastante a amargura que perseguiu o indivíduo Graciliano vida afora, a ponto de fazer muito surpreendentes as passagens de ternura e humor que sua obra contém. A infância do escritor alagoano exemplifica como são duradouras as experiências desagradáveis do início da vida e quão profundos são os sulcos que elas deixam no espírito.

Passada essa abertura em que o clima depressivo contrasta com o estilo primoroso – talvez seja o livro mais bem escrito do autor –, o mundo do menino nascido em Quebrangulo começa a ampliar-se com a mudança para Buíque, onde ele, atordoado pela vida numa cidade mais considerável, além de atormentado pelo aperto dos sapatos e do paletó que o obrigavam a usar, conhecia alguns indivíduos da vida real que mais tarde povoariam sua ficção: o fazendeiro decaído a jogar baralho com soldados, em cena tão parecida àquela famosa de Vidas secas; um outro chamado Paulo Honório (exatamente o nome do protagonista de São Bernardo), e assim por diante.

O menino recordado pelo adulto estava sempre na contramão do pensamento alienado dos adultos. Aquele seu mundinho dos primeiros anos havia crescido, a terrível mãe encolhera a ponto de parecer-lhe infantil com suas crenças religiosas; quando ela lhe fala no inferno, Graciliano pergunta se ela estivera lá, e, invocada a autoridade dos padres, a pergunta se torna mais rigorosa: “Eles estiveram lá?” Essa ampliação do mundo é acompanhada pelo estilo da escrita, que se torna crescentemente mais irônico e bem menos amargo, enquanto o menino vai conhecendo gente que o faz cada vez mais atento e questionador, como o policial José da Luz, “mestiço pachola” que “avizinhou-me da espécie humana”.

Aprimorando-se intelectualmente, Graciliano passa a considerar uma desonestidade decorar as patacoadas do Barão de Macaúbas, que pautavam a ideologia escolar na virada do século. Torna-se cada vez mais exigente à medida que se intelectualiza, e isso antes dos onze anos; exigente consigo mesmo, em primeiro lugar, pois nunca deixa de autodepreciar-se tanto do ponto de vista físico quanto do intelectual – atitude que parece atestar que nunca o abandonou de todo aquela marca dos tempos em que sua convicção era não passar de “uma besta”.

Mas sua visão se mostra cada vez mais penetrante. A inteligência selvagem do garoto será potencializada pela literatura, que aos poucos passa a fazer parte do seu mundo e, claro, molda definitivamente a vocação de escrever. Ao descobrir o encanto dos livros, Graciliano encontra um sujeito generoso que, possuindo razoável biblioteca, empresta-lhe títulos e mais títulos; o progresso de sua inteligência é perceptível em poucos meses, e aquele horror ao autoengano dos adultos de carne e osso se converte em aversão à “literatura encrencada”, que tanto marcará seu estilo e sua atitude ética perante a literatura e a vida. À escrita com “muito artifício e pouca substância”, continuava preferindo os romances de capa e espada que não almejavam mais do que divertir o leitor.

Nesse ponto nos aproximamos do desfecho, em que o menino Graciliano se vê atormentado pelos sinais físicos e psicológicos da puberdade, logo depois de ser “cassado” em sua função de coroinha por não atinar com o modo correto de manusear um turíbulo. Mas nenhuma síntese faz justiça ao prazer que é a leitura de Infância; sua riqueza de episódios e personagens, somada a um estilo já preciso, porém chegado a seu máximo grau de eficácia, fazem desse livro uma das mais perfeitas produções da literatura brasileira.

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Livrarias e sebos