Oswald nos andaimes, por Eloésio Paulo

A primeira informação importante sobre Oswald de Andrade é que ele detestava ser chamado de “Ôswald”, o “horrível proparoxítono” (como o definiu Antonio Candido). Estabelecido isso, por que alguém leria Os condenados ou A trilogia do exílio, obra escrita entre 1917 e 1921? As três narrativas que se encadeiam para relatar a crise espiritual e artística de Jorge d’Alvelos, alter ego do autor, não fazem parte do tronco principal da obra oswaldiana, mas ajudam bastante a compreender certos aspectos de Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), que formam com Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, o trio de narrativas (eles não as chamavam de “romances”) mais revolucionárias do Modernismo nacional.

Mas a trilogia tem valor por si mesma. Em sua primeira parte, sobretudo, concentra-se um drama humano tocante, o de Alma d’Alvelos, cuja queda na prostituição tem algo de trágico, embora a encantadora moça dos cabelos vermelhos seja com frequência debochada, ainda mais se o alvo do deboche for João do Carmo, um romântico telegrafista que a ama a distância. Ao longo da derrocada de Alma, esse pobre rapaz vive à espreita da oportunidade de tirá-la da lama, oferecer proteção a ela e ao filho. A moça, porém, ao mesmo tempo está acostumada àquela vida e tem uma paixão autodestrutiva pelo cafetão Mauro Glade.

Os enredos são até certo ponto banais. A criatividade explosiva de Oswald era mais dada aos experimentos com a linguagem e a microforma narrativa do que à sustentação de um romance de feitio tradicional. Fica para os leitores mais atentos a observação de como o autor pintou, num estilo fragmentário, cheio de lacunas temporais e espaciais, um retrato bastante convincente daquela São Paulo do início do século XX, muito acanhada mas já atravessada por todas as contradições do capitalismo industrial. O cotidiano da capital paulista enquanto se gestava a revolução do Modernismo comparece, por amostragem, ao longo de episódios entrecortados que culminam com a perdição do telegrafista amoroso e bem-intencionado.

A continuação, com seu título de extração apocalíptica, é “A estrela de absinto”. Nela o escultor Jorge d’Alvelos toma seu lugar de protagonista, também procurando regenerar moralmente sua prima Alma, por quem se apaixona. Ele estivera estudando na Europa, e retorna a São Paulo com a intenção de integrar-se ao movimento de renovação da arte, que coincidia com as comemorações do primeiro centenário da Independência. Aí as correrias serra abaixo e acima para e de Santos, no famoso Cadillac cujo dono real foi Oswald, mas que ficcionalmente é atribuído a propriedade de um amigo do protagonista, expõem o vácuo existencial de uma turma de amigos que mais tarde Jorge chamará, incluindo-se na lista, de “meninos bonitos e inúteis”. Entre esses companheiros de esbórnia, curiosamente, dois irmãos cujo sobrenome ou apelido é “de Alfenas”.

A morte de Alma precipita o artista numa crise já anunciada pela falta de rumo de seus projetos escultóricos, e ele acaba dando um tiro no peito. Salvo pelo desvelo de médicos, amigos e irmãs de caridade, reencontra no hospital seu antigo amor europeu, Mary Beatriz, mas a moça morre de tuberculose. Por essa amostra de romantismo galopante, confirmamos que o escritor não era talhado para elaborar enredos. Mas a trilogia, assim como os esboços estatuários de Jorge d’Alvelos, é em certo sentido um rascunho das deslumbrantes soluções encontradas por Oswald nas Memórias e no Serafim; somente pelas passagens bem logradas desse ensaio de estilo cubo-futurista a leitura já valeria.

Na terceira parte, “A escada”, outra mulher vem resgatar o protagonista de sua orfandade existencial. Jorge se parece muito com seu criador, que foi casado seis vezes e intitulou o primeiro volume da própria biografia como “Sob as ordens de mamãe”. Oswald, que dilapidou uma grande fortuna familiar para viver ao sabor dos impulsos e escrever a obra literária mais original de nossa literatura, sempre foi um dependente do feminino. Outra vez, porém, a mulher lhe foge, agora não mais pela morte, mas pela dedicação à causa comunista. E Jorge termina convertido à revolução proletária, fugindo da polícia e aspirando a ser, como diria o autor no prólogo do Serafim, “casaca de ferro” do movimento socialista.

Se o leitor pode pular essas 290 páginas e ir direto às Memórias sentimentais de João Miramar? Até que pode, mas talvez nem os brilhantes prefácios de Haroldo de Campos, bulas imprescindíveis na leitura das obras mais explosivas do escritor paulistano, ajudem tanto a compreendê-las (expondo-as, por assim dizer, nos andaimes) como a leitura atenta e paciente da Trilogia do exílio.

Onde encontrar: 
Livrarias e sebos