Retornando a um genocídio, por Eloésio Paulo

Os que desejam apagar a história recente do Brasil têm razão. Sim, pois uma razão pervertida continua a ser – ao menos na superfície – razão. Veja-se, a propósito, o mais recente livro de Frei Betto: ele recupera, com base em farta documentação, um episódio que os apologistas do nosso capitalismo caboclo prefeririam deixar no esquecimento. Porque o esquecido ou ignorado, para muitos efeitos (menos suas consequências morais e factuais), acaba por não existir.

Tom vermelho do verde, que acaba de ser lançado pela editora Rocco, é um romance-reportagem de fundo histórico. A narrativa aglutina-se em torno de fatos anteriormente investigados pelo padre Silvano Sabatini no livro Massacre (1998), escrito em parceria com o jornalista Antônio Carlos Fon. O título de Frei Betto poetiza o de sua fonte; massacre é a palavra que expressa direta e cabalmente do que as obras tratam: do genocídio de uma nação indígena, os waimiri-atroari. Esse povo originário da floresta tem suas terras localizadas na divisa do Amazonas com Roraima e, na visão do governo militar imposto ao país em 1964, era o grande obstáculo à construção da rodovia Manaus-Boa Vista, a BR-175.

A narrativa remonta a outra ditadura, a de Getúlio Vargas (1930-1945), quando os interesses econômicos locais e estrangeiros – leia-se estadunidenses – começaram a confirmar algo havia muito suposto: o enorme potencial da Amazônia para a exploração mineral. Do delineamento dessa cobiça de grosso calibre, o narrador chega ao ano de 1968, quando, sob o pretexto de “integrar” a região amazônica ao território brasileiro, a administração militar de turno decidiu esticar selva adentro a referida estrada. O problema era que o traçado da rodovia cortava o território do povo kinja (que é como os waimiri-atroari se denominam em seu próprio idioma).

Uma expedição do antigo Serviço de Proteção ao Índio, fundado em 1910 pelo marechal Cândido Rondon e agora renomeado FUNAI, foi destacada para “pacificar” a nação indígena e convencê-la a tirar suas tribos do caminho. Esse episódio é o núcleo dramático de Tom vermelho do verde, pois é em torno dele que se estrutura o conflito; o que alguns responsáveis pelo empreendimento não sabiam é que havia outra expedição já organizada, mas cujo objetivo era sabotar a equipe da FUNAI. Esta termina assassinada – com crueldade sádica, no caso das duas mulheres que dela faziam parte – sob o comando do mateiro Fulgêncio Soares, que merece entrar para o rol dos grandes bandidos nacionais. Dos comuns, pois figuram no livro diversos criminosos de alto escalão, alguns nomeados por seus nomes civis e ainda atuantes na política brasileira. Os grandes vilões da história, porém, são um militar do Exército e um pastor evangélico norte-americano.

A morte dos funcionários da FUNAI ganha destaque no enredo também porque foi objeto de investigação da imprensa brasileira e internacional na época. Os cadáveres trafegaram pelo céu de Manaus pendurados em helicópteros do governo e envolvidos na grande mentira oficial de que a culpa era toda de uns guerrilheiros imaginários. As mortes que importam mesmo são as dos waimiri-atroari, que se contam aos milhares e se deram por vários meios, incluindo bombardeios de veneno a tribos inteiras. Para esse assassinato coletivo, como disse Euclides da Cunha em Os sertões, toda a eloquência imaginável seria insuficiente. O poder público brasileiro, acusa o ficcionista ao avançar pelo terreno dos fatos – pois a mera ficção, aí, seria leviandade –, matou gente indefesa como se exterminasse insetos.

O romance de Frei Betto vem confirmar o testemunho, dado por todos quantos tenham feito relatos objetivos a respeito disso, de que o melhor negócio para os povos originários sempre teria sido o homem “civilizado” ficar bem longe deles. O tema pediria o andamento épico, mas não são mais tempos para a dicção heroica, e já existe, a propósito dele, um imaginário coletivo bastante rico, informado pelo cinema. Quem vê, por exemplo, o filme A missão (1986), de Roland Joffé, talvez evoque em seu desfecho a cena inicial do poema O Uraguai (1769), escrito por Basílio da Gama: “Fumam ainda nas desertas praias/ Lagos de sangue tépidos e impuros/ Em que ondeiam cadáveres despidos,/Pasto de corvos (…)”. Também naquela época era o Estado impondo a “ordem” aos selvagens “ignorantes” e “inferiores” em nome de valores “cristãos”.

Mais próximo do livro em questão, por colocar diretamente o interesse de uma potência estrangeira nas riquezas da Amazônia, é Brincando nos campos do senhor (1991), de Hector Babenco, baseado no romance homônimo de Peter Matthiessen publicado em 1965. Na literatura brasileira, essa epopeia funesta ainda não foi suficientemente representada, e talvez também por isso ainda exista entre nós gente pensando que índios não são pessoas de verdade, são só figuras de celuloide.

O autor de Tom vermelho do verde soube dosar as informações factuais e o pouco de ficção que seu livro contém. Explorou com naturalidade diálogos que podem muito bem ter ocorrido; em outros, a dose de didatismo é um pouco excessiva, embora talvez inevitável devido à natureza do tema. Não importa, o livro é, desde já, obra capital para que o Brasil recupere um pouco de sua consciência histórica, começando talvez a reverter o processo deliberado (da parte dos que o conduzem) de esvaziamento intelectual e espiritual da nossa população, que vem resultar em fenômenos aparentementemente desconectados entre si, como a ditadura do “sertanejo” “universitário” e o “novo” “ensino” “médio”…

Carlos Alberto Libânio Christo é mineiro de Belo Horizonte e nasceu em 1944. Já publicou dezenas de obras desde as Cartas da prisão (1970) e é um dos intelectuais brasileiros mais respeitados mundo afora. É também um daqueles homens “imprescindíveis” do poema de Bertolt Brecht: tem lutado uma vida inteira, nunca perdendo de vista que Jesus Cristo não foi crucificado por sua pregação moral (os hebreus já eram moralistas de sobra), mas por haver incomodado terrivelmente os donos do poder e do dinheiro, justamente os antepassados espirituais daqueles que cumprem, diariamente, a profecia do “muitos virão em meu nome”. Não é necessário concordar com todas as posições políticas de Frei Betto para reconhecer-lhe essa qualidade, que seu novo livro vem reafirmar uma vez mais.