O romance de um poeta concretista tinha que ser um caso-limite da ficção brasileira. Nesse sentido, Panteros (1992), a segunda e última incursão de Décio Pignatari pela prosa artística, integra a família de narrativas como Catatau (1975), de Paulo Leminski, e No coração dos boatos (1984), de Uilcon Pereira: a dos textos construídos para abrir picadas além do beco sem saída em que Guimarães Rosa e Clarice Lispector haviam colocado a arte da ficção em português.
Em outro sentido, o de sua significação profunda, Panteros é um romance-deformação (vamos chamá-lo assim, para que todos se lembrem de que a expressão homófona é um cacófato), ou seja, o relato dos atritos de um menino católico e interiorano com a impureza do mundo, que o corrompe para possibilidade do amor e para a salvação da alma, sobrando-lhe o exercício da poesia como busca de um sentido que repare a perda causada pelo desmoronamento daquelas ficções ideológicas que lhe haviam estruturado a personalidade.
Por causa do primeiro aspecto, não é uma leitura fácil. Pignatari, um estudioso cultíssimo, enche sua narrativa de experimentos de linguagem, alguns dos quais beiram o hermetismo. Em compensação, as fulgurações de lirismo e humor que ponteiam sua prosa nos chegam como surpreendentes manifestações do prazer de ler. Afinal, o escritor era um poeta tentando ser prosador, nada mais natural do que depararmos com iluminações de linguagem mais comuns na poesia do que na ficção. Quanto ao humor, pode provocar tanto gargalhadas quanto indignação – no caso de leitores muito suscetíveis às brincadeiras obscenas, que não são poucas no texto pignatariano.
O livro se estrutura de modo inusitado, como seria de esperar da parte de um autor vanguardista. A narrativa é fatiada em capítulos que devem ser lidos, alternadamente, um a partir do início e o próximo a partir do final. No capítulo 21, os dois sentidos de leitura convergem no título-refrão do tema musical de Casablanca (1942), um dos maiores sucessos do cinema em todos os tempos: a famosíssima canção As time goes by. Cada verso da canção intitula um capítulo. Essa conformação, por si mesma, não traz grandes problemas para o leitor, pois há uma história cujo fio narrativo é claro, embora por vezes obscurecido pelos desvios gerados pelo experimentalismo da escrita.
O enredo é, no geral, bem típico do que na literatura alemã se chama Bildungsroman e, na francesa, por conta do título flaubertiano, romance de educação sentimental. Em resumo, o personagem principal, chamado Miro, é um evidente alter ego do poeta: também era um menino feio e narigudo nascido em Osasco, nas cercanias de São Paulo, na época da Segunda Guerra Mundial; como Pignatari fez, Miro joga futebol de várzea e se apaixonada por uma colega belíssima chamada Yara, num tempo em que o Carandiru era a “nova penitenciária” paulistana e as pessoas diziam “relógio-pulseira”. As marchas e contramarchas desse amor juvenil dominarão o primeiro plano da narrativa, no entanto cheia de referências a episódios autobiográficos e históricos que vão até o final dos anos 1940. Logo depois disso, Décio se tornaria, com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, líder de um movimento poético vanguardista de expressão mundial.
Miro vem de mirar, e inicialmente deve ter sido inspirado no João Miramar de Oswald de Andrade. A frase de corte oswaldiano, veloz e alusiva, predomina no início da narrativa, ecoando claramente a leitura das Memórias sentimentais (1924). Depois é que o maquinismo experimental da prosa pignatariana deflagra a cada passo novos recursos de linguagem, os quais por vezes chegam a ser incompreensíveis para nós, pobres mortais. Mas também existem passagens quase perfeitamente convencionais, como as transcrições de trechos do diário de Miro. É um estilo, enfim, morde-e-assopra.
O desfecho, despetalado em versos de sintaxe visual semelhante à da poesia de Mallarmé, traz a marca de um acentuado desengano de Miro com o Brasil e com seu caso de amor, que precisava resolver-se em casamento, mas ele contava ainda 18 anos e estava no início da faculdade de Direito. Numa conclusão de capítulo bastante engraçada, ele declara que o Brasil é um país “cômico”, e, logo depois, o narrador diz que quem aqui nasce “não tem futuro’, a exemplo de seus conterrâneos “osasquerosos” (Pignatari nasceu em Jundiaí, mas passou a maior parte da infância e da juventude em Osasco). No capítulo final, o estranho (e ruim) desenho em que a sombra de um homem – presumivelmente o próprio Miro/Pignatari – é cavalgada sexualmente por uma mulher com cabeça de pantera.
Mas onde entra a pantera nisso tudo? Houve tentativas chutométricas de interpretar o título do livro como síntese de Pan (= tudo, todo) e Eros (deus grego do amor), o que até seria coerente com o enredo. Mas o próprio autor, numa entrevista dada quando do lançamento de Panteros, esboçou a teoria, parece que feita para consumo próprio, de que o grande felino tinha algo a ver com o surgimento da poesia, uma potência selvagem (“panfera”) que viria resgatar o jovem desiludido para certa possibilidade de sentido existencial restrita à prática da poesia. Pignatari, na mesma entrevista, disse que não releria o livro, de cuja escrita se ocupara por dois anos, pois poderia não gostar dele. Talvez, por motivos muito diferentes, seja esse o caso da maioria entre os raros leitores de seu romance.