Lá ao longe, uma ditadura, por Eloésio Paulo

As meninas são três: Lia, Lorena e Ana Clara. Esta, também chamada Ana Turva pelas colegas, devido a seu modo de viver, mais para a escuridão do que para a claridade. Elas são, ou foram, estudantes que moram num pensionato de freiras em São Paulo. A época, os anos mais trevosos do regime militar imposto ao país em 1964, marcados pelo terrorismo de Estado.

A ação transcorre ao longo de poucas semanas, talvez menos de duas. É o período em que Lorena está sem aulas por sua faculdade de Direito estar em greve. No caso das outras moças, os cursos haviam sido abandonados em função da militância política (Lia) e de uma existência errática, feita de desequilíbrio mental, ressentimento, drogas e autoengano (Ana Clara). Temos aí os elementos essenciais do terceiro romance de Lygia Fagundes Telles (1918-2022), única autora em condições de disputar com Clarice Lispector o título de maior escritora brasileira de ficção. O de maior poeta é de Cecília Meirelles, ninguém passa nem perto, apenas Carlos Drummond de Andrade, que para um pouco ali adiante.

As meninas (1973) representa grande progresso em relação a Ciranda de pedra (1954) e Verão no aquário (1964). Nele, Lygia atinge o ápice de seu domínio da narrativa longa, ao passo que seus contos, já havia muito, credenciavam-na como sucessora legítima da narrativa curta machadiana. Alguns deles, como “Natal na barca”, “Venha ver o pôr-do-sol” e “Biruta”, são peças obrigatórias em qualquer antologia do conto brasileiro.

Os fatos são, nesse livro, principalmente interiores. A técnica narrativa alterna entre o ponto de vista de um narrador onisciente e as perspectivas das protagonistas. Feitas as contas, duas delas são mais protagonistas que a terceira, pois, se as desventuras de Ana Clara compõem as passagens mais emocionantes do romance, as andanças de Lia em sua faina revolucionária e os devaneios de Lorena ocupam maior espaço. Por isso, chega a ser surpreendente que a tragédia da ex-estudante de Psicologia, vinda de uma infância pobre e infeliz e além disso (ou por causa disso?) mitomaníaca e drogada, ocupe o primeiro plano nas últimas páginas.

Quanto à ditadura, é um espectro longínquo. Tirante a leve paranoia de Lia, cujo namorado preso nos porões da ditadura tem a sorte de ser um daqueles militantes trocados pela libertação de um embaixador sequestrado, o fato de o país viver sob um regime de exceção nem provoca tanta alteração na vida das personagens. Era o período, logo posterior ao AI-5, que escancarou a repressão e a tortura, no qual boa parte dos escritores brasileiros optou pela alegoria ou pela fragmentação da narrativa para denunciar o regime. Depois viria a descompressão, bem representada pelas memórias de ex-guerrilheiros como Gabeira e Alfredo Sirkis e coincidente com a agonia da ditadura. Em As meninas, o espaço do protesto político é tomado pelo estudo da psicologia de três moças, uma tão diferente da outra.

Lorena, a refinada, em tudo lembra uma projeção da autora, que também foi estudante de Direito; seu dinheiro sobra, mas, em compensação, ela tem um terrível trauma de infância e sofre de amor por um homem casado. Lia, baiana cujo pai é um nazista arrependido, come sem parar as próprias unhas e, ocupada nas atividades políticas, descuida da própria aparência. Ana Clara, a linda (mesmo tendo na boca, desde criança, uma ponte fixa), é irresistivelmente atraída pelos abismos e ilustra a todo passo a hipótese do poema de Manuel Bandeira: “degradada até a última baixeza”.

Nessas semanas em que três vidas são esquadrinhadas pela câmera móvel do narrador, expõe-se também a trama de diversas outras vidas entrelaçadas às das meninas; por exemplos: a de Max, ex-rico e agora traficante, namorado de Ana Clara; a da mãe de Lorena, explorada por um amante bem mais jovem; a de Miguel, o companheiro de Lia, que leva chifres de longe (pois está na cadeia) e nunca comparece à narrativa senão por meio dos pensamentos da moça. Enfim, parece que o amor, ou suas impossibilidades, é o grande tema do romance, apesar dos tempos desamorosos por que passava o Brasil.

A mobilidade da técnica narrativa, em que a ação consiste principalmente em diálogos, faz de As meninas uma leitura bastante atraente. Quando o leitor percebe, já está no fim das 250 páginas e os destinos de duas das protagonistas se anunciam totalmente abertos à incerteza do futuro. Exceto no caso de um ocultamento de cadáver não sair conforme ao esperado.