Bicentenário da Independência do Brasil, por Mário Danieli Neto

No Bicentenário da Independência do Brasil, convidamos para uma reflexão acerca de um dos personagens mais marcantes de nossa História: José Bonifácio de Andrada e Silva. Nascido em Santos (SP) em 1763, estudou na Universidade de Coimbra, onde formou-se em filosofia e direito e, posteriormente, formou-se em mineralogia pela Universidade de Freiburg. Faleceu em Niterói no ano de 1838.

Conhecido como “o patriarca da Independência”, José Bonifácio foi um dos homens mais atuantes no campo político ao longo dos períodos mais tensos que antecederam a ruptura com Portugal. Mesmo após a independência, enquanto ministro de Estado e deputado constituinte, destacou-se por suas propostas que visavam consolidar o Brasil independente e “civilizar” a sociedade do novo país.

Leitura essencial para a compreensão de seus ideais políticos é a coletânea de textos do autor organizada e comentada pela Professora Miriam Dolhnikoff, intitulada “Projetos para o Brasil”. A obra reúne escritos de José Bonifácio sobre diferentes temas acerca do que ele entendia ser fundamental para a evolução política, econômica, social e cultural do Brasil no início do século XIX. Alguns escritos, como aponta a organizadora do livro, trazem impressões pessoais do autor, misturadas, às vezes, com comentários mais gerais acerca de temas como escravidão, tráfico de escravos, situação dos indígenas, questões ligadas à propriedade fundiária, entre outros.

Concretizada a independência em 1822, instaurou-se no ano seguinte a Assembleia Constituinte que deveria ser responsável pela elaboração da primeira constituição da nação independente. O sistema de governo era a monarquia constitucional, ou seja, o poder do monarca era limitado pela obediência à constituição, lei fundamental, por meio da qual, procurava-se evitar o absolutismo.

Em 1823, José Bonifácio, assim como outros deputados constituintes apresentaram projetos à Assembleia, os quais deveriam ser debatidos, reformulados, aprovados ou recusados ao longo daquele ano, até que se chegasse à redação final da carta constitucional.

Entre os projetos apresentados por José Bonifácio, destacamos um em que o autor trata de dois problemas que eram de grande complexidade para a época: o tráfico de escravos e a escravidão. Inspirada nos ideais de liberdade e no liberalismo europeu e estadunidense do século XVIII, a escrita da constituição do Brasil enfrentava algo contraditório: como uma nação poderia dizer-se “livre” se mantinha grande parte de sua população em regime de escravidão?

A representação feita por José Bonifácio a respeito do problema da escravidão no Brasil, propunha o fim do tráfico de escravizados para dentro de quatro ou cinco anos a contar da aprovação do projeto e a sua transformação em lei pela Assembleia Constituinte. Em sua proposição, José Bonifácio mostrava “a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação”.

Ciente da dificuldade que tal proposta encontraria frente aos senhores escravistas, a representação feita por José Bonifácio apresentava formas de libertação gradual, intervindo o próprio Estado na relação entre senhores e escravizados, com vistas a “retirar dos grandes proprietários o pleno arbítrio sobre a vida dos seus cativos”.

A representação ainda propunha uma série de medidas que buscavam amenizar as condições de trabalho degradantes sob o regime escravista, como, por exemplo, limitação de horas de trabalho diárias, resguardo para mulheres escravizadas grávidas e com crianças recém-nascidas, proibição de que escravizados menores de doze anos fossem empregados em tarefas insalubres e esforços “demasiados”, entre outras.

Na visão de José Bonifácio, a gradativa emancipação dos escravizados deveria ser seguida por medidas que permitissem alguma melhora nas condições de vida para os egressos da escravidão, assim como, o acesso a pequenas porções de terras para serem cultivadas por aqueles ex-escravizados que não possuíssem nenhum ofício capaz de sustenta-los, bem como as suas famílias.

Desse modo, a libertação da escravidão seria acompanhada por uma preocupação em manter essa população em atividades produtivas, evitando-se o ócio e a “vadiagem”. Preocupado também em manter a ordem social e evitar confrontos violentos entre livres e escravos, José Bonifácio propunha, nessa representação, que a sociedade do Brasil independente temesse a formação de “novos Palmares de negros!”

Na sequência dos acontecimentos, em novembro de 1823, a Assembleia Constituinte foi dissolvida pelo Imperador D. Pedro I, insatisfeito com os rumos que as discussões estavam tomando e com o caráter demasiadamente liberal do texto inicial proposto pelos constituintes. José Bonifácio foi exilado para a França, voltando posteriormente, já no período Regencial (1831-1840), como tutor de D.Pedro II.

Ao longo de sua carreira política destacou-se pela firmeza de suas propostas, mas ao mesmo tempo, acumulou desavenças e inimizades que lhe custaram prisões e exílios. Perseguiu e foi perseguido. Sobre o Brasil, pensava o país independente tendo como sustentáculo um ideal de civilização espelhado nas nações europeias. Para época e sociedade em que escreveu, a ousadia de algumas de suas propostas não ocultava, contudo, seu pensamento político conservador.

Coetâneo da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, José Bonifácio era contrário aos princípios democráticos, os quais identificava com a ruptura da ordem social. Em suas palavras: “Sem muito sangue a democracia brasileira, que se possa estabelecer, nunca se estabelecerá senão quando passar à aristocracia republicana, ou governo dos sábios e honrados, que é o único que pode durar e consolidar-se”

Nas comemorações dos 200 anos da independência do Brasil, os escritos de José Bonifácio merecem uma leitura atenta. Muitos temas que foram tratados por ele sobre o Brasil, permanecessem atuais, como se fossem saídos um passado atávico, cuja superação ainda nos desafia enquanto nação independente.