Entre a Rio-92 e a COP 26, temos a ‘vida real’

Lora dos Anjos Rodrigues
Kellen Rocha de Souza

A Conferência das Partes (COP) reúne anualmente líderes dos países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), criada durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, também conhecida como “Cúpula da Terra” ou Rio-92. Nesse tratado, os países Parte firmaram o objetivo final de alcançar a estabilização da concentração de gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera a um nível que impediria uma interferência perigosa da atividade humana no sistema climático [1].

Em seu Artigo 7, a COP foi estabelecida com a finalidade de revisar regularmente e promover a efetiva implementação da Convenção-Quadro. Para tanto, compete a esta conferência (a) examinar periodicamente as obrigações das Partes e os arranjos institucionais estabelecidos; (b) promover e facilitar a troca de informações e medidas adotadas para lidar com a mudança climática e seus efeitos; (c) promover o desenvolvimento de metodologias de inventário de GEE para avaliar a eficácia das medidas tomadas para reduzir e capturar estes gases da atmosfera; (d) avaliar a implementação da Convenção-Quadro pelas Partes e os efeitos ambientais, econômicos e sociais das medidas adotadas; (e) entre outros [1].

Já em sua vigésima sexta edição, em 2021, a COP 26, realizada na cidade de Glasgow, na Escócia, teve como desafio discutir e apresentar os caminhos para alcançar o objetivo pretendido no Acordo de Paris de 2015 de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5º C acima dos níveis pré-industriais, visando reduzir o risco e os impactos das mudanças climáticas [2]. Para tanto, os países precisavam anunciar suas Pretendidas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC, na sigla em inglês), apresentando suas metas e planos de corte de emissões de carbono até 2030.

Nesse contexto, o Brasil involuiu de uma posição de liderança, quando aderiu voluntariamente ao Protocolo de Quioto em 2002 e implementou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal em 2004 [3; 4; 5], até uma atitude de “fuga” da conferência, pois o próprio presidente do país não compareceu às negociações.

Durante a conferência, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Álvaro Pereira Leitei, anunciou a ampliação da meta de redução de emissões de GEE de 43% para 50% até 2030. O que não foi explicitada, no entanto, foi a base utilizada para calcular estas emissões e, portanto, a meta absoluta de redução. Essa atitude reforçou o ceticismo da comunidade internacional quanto à progressividade na queda das emissões. ‘Cá entre nós’, no extremo, 50% pode ser 0, se a base de cálculo for 0! Segundo o Observatório do Clima [7], essa nova meta minimiza a “pedalada de carbono” ou “pedalada climática” (da qual o governo foi acusado em dezembro de 2020, quando a base de cálculo foi atualizadaii), mas não diminui “a vergonha”. Na verdade, essa atitude acabou por reforçar a percepção da falta de esforços do governo brasileiro, já que não foram apresentados mais detalhes sobre as ações necessárias para cumprir tal compromisso. Além disso, os recordes na taxa de desmatamento, responsável pela maior parcela das emissões de GEE do país, trabalham contra essa meta [8; 9; 10].

Ainda vale ressaltar que, semelhantemente ao que foi apresentado pelo ministro Joaquim Leite, o Senado aprovou, em outubro, o Projeto de Lei (PL) n° 1539, de 2021iii [11], que propõe o compromisso de reduzir as emissões projetadas em 43% até 2025 e em 50% até 2030. No entanto, o PL utiliza o termo emissões “projetadas”, que terão por “base o mais recente Inventário Brasileiro de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal, usando como referência o ano de 2005”, enquanto, tradicionalmente, tem-se definido as metas com base no nível de emissões de 2005. Assim, dada a falta de clareza no pronunciamento do ministro quanto à base de cálculo da meta anunciada, podemos ter um conflito entre ambas as metas, ou seja, a definida pelo PL e a já apresentada à ONU. Além disso, a falta de definição clara da base de cálculo decorrente da adoção do termo “emissões projetadas”, o fato de estas projeções e as respectivas ações para seu cumprimento serem definidas por regulamento a ser elaborado por decreto presidencial, bem como o não compromisso com a eliminação do desmatamento ilegal até 2025 (diferentemente do que previa a proposta inicial do supracitado PL) podem, na prática, se traduzir em mais um recuo na área ambiental do país. Ressalva-se que o PL ainda precisa ser aprovado pela Câmara dos Deputados.

Verifica-se total incoerência entre o discurso apresentado na COP 26 e a prática da política ambiental interna desenvolvida nos últimos 3 anos, que tem posicionado o país internacionalmente como um ‘pária’ ambiental. Comecemos recordando o ‘revogaço’ na legislação de proteção ambiental que dispensou empreendimentos de irrigação do licenciamento ambiental, eliminou os critérios que estabeleciam Área de Preservação Permanente (APP) em manguezais e restingas e extinguiu órgãos colegiados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), afastando o controle social da política ambiental [12;13]. Mas não só de desmonte se faz essa política… Também pudemos observar a elaboração e/ou aprovação de regulamentações que aumentam o risco degradação socioambiental, como o projeto de lei que permite mineração em terras indígenas, além de dificultar novas demarcações, o decreto que transferiu o poder de conceder florestas para o Ministério da Agricultura e o decreto que flexibiliza a aprovação de agrotóxicos no Brasil, além de incorporar propostas do projeto de lei chamado Pacote do Veneno. Aliás, essas práticas são, sim, condizentes, mas com o discurso da ‘vida real’ do governo de “ir passando a boiada” na questão ambiental, conforme dito, acreditem, pelo próprio ministro do Meio Ambiente à época, Ricardo Salles, em memorável reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 [13; 14; 15].

Mas não foi só o Brasil que não avançou. Sem discutir o mérito, observamos que os países se comprometeram em zerar o desmatamento e reduzir emissões de metano até 2030. Porém, na ‘vida real’, a já citada comunidade internacional (aqui, leia-se, os países desenvolvidos) ainda subsidia o uso de combustíveis fósseis enquanto resiste em se comprometer com a transição energética da economia para fontes renováveis e com uma mudança cultural no setor de transportes; também resiste em assumir responsabilidades e compensações por perdas e danos climáticos aos países mais vulneráveis, além de adiar o repasse de recursos para financiamento de iniciativas que reduzam emissões de GEE nos países em desenvolvimento [16; 17; 18; 19].

Entre a Rio-92 e a COP 26, o mundo aumentou a produção de plástico, exportou lixo para os países em desenvolvimento, explorou novas reservas de petróleo…. [20; 21; 22; 23]. As práticas na ‘vida real’ estão correndo atrás do discurso político. A cada COP, vemos uma “regulamentação da regulamentação” e poucos anúncios de mudanças com resultados efetivos. O ritmo da transformação está em descompasso com a necessidade de transformação, que ‘é pra ontem’!

Notas

i. Sim, é o mesmo sujeito que atuou 23 anos como conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB), que se notabilizou por apoiar a gestão do ex-ministro Ricardo Salles [6].

ii. Em dezembro de 2020, o Ministério do Meio Ambiente manteve a meta no mesmo percentual de redução (43%) definido em 2015. Entretanto, com a publicação do Terceiro Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa, o valor absoluto dos gases emitidos em 2005, base para o cálculo, foi atualizado de 2,1 bilhões de toneladas para 2,8 bilhões de toneladas. Assim, “na prática, se em 2015 a meta de redução de 43% significava emitir 1,2 bilhões de toneladas de gases até 2030, a nova meta, com a mesma taxa de redução, permite o Brasil emitir 1,6 bilhões de toneladas no mesmo período” [7; 8].

iii. Este projeto altera a Política Nacional sobre Mudança do Clima estabelecida na Lei 12.187, de 29 de dezembro de 2009.

Para detalhes, consultar:

[1] https://unfccc.int/resource/docs/convkp/conveng.pdf

[2] https://unfccc.int/sites/default/files/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf

(versão traduzida: https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-08/Acordo-de-Paris.pdf )

[3] https://unfccc.int/sites/default/files/resource/docs/cop3/l07a01.pdf

[4] https://antigo.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/protocolo-de-quioto.html

[5] https://www.scielo.br/j/rieb/a/msDPhRYtxfFyh4tvnp5SYrG/?lang=pt&format=pdf

[6] https://br.noticias.yahoo.com/quem-e-joaquim-alvaro-pereira-leite-ruralista-que-assume-ministerio-do-meio-ambiente-203549718.html

[7] https://www.oc.eco.br/nova-meta-do-brasil-no-clima-reduz-pedalada-mas-nao-a-vergonha/

[8] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/04/14/jovens-processam-governo-por-pedalada-climatica-e-pedem-anulacao-de-meta-brasileira-no-acordo-de-paris.ghtml

[9] https://www.gov.br/inpe/pt-br/assuntos/divulgacao-de-dados-prodes.pdf/view

[10] https://www.carbonbrief.org/analysis-which-countries-are-historically-responsible-for-climate-change

[11] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148186

[12] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54364652

[13] https://oeco.org.br/reportagens/revogaco-extingue-orgaos-colegiados-do-ministerio-do-meio-ambiente/

[14] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-28/projeto-que-autoriza-garimpo-em-terra-indigena-e-dificulta-demarcacao-e-meta-bolsonarista-na-camara.html

[15] https://www.greenpeace.org/brasil/blog/mais-veneno-no-prato-dos-brasileiros/

[16] https://news.un.org/pt/story/2021/11/1770432

[17] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59274397

[18] https://news.un.org/pt/story/2021/11/1770042

[19] https://news.un.org/pt/story/2021/11/1769672

[20] https://revistapesquisa.fapesp.br/planeta-plastico/

[21] https://www.bbc.com/portuguese/geral-48489791

[22] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/01/130118_lixo_eletronico_bg

[23] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45978190