“Nem tudo foi Jorge Amado na região baiana do cacau”, por Eloésio Paulo sobre o livro de Euclides Neto “Comercinho do Poço Fundo”

A poesia é, por natureza, sintética. A ficção, ao contrário, é essencialmente analítica. Nos grandes escritores, muitas vezes o equilíbrio entre ambas atesta a presença do gênio. É o caso de Guimarães Rosa, que em certos momentos, porém, desequilibrou-se para um dos lados — caso de Tutameia, onde o pendor barroquizante da prosa poética chega a prejudicar a comunicabilidade, ao menos para leitores não interessados ou pouco capazes de acompanhar as possibilidades vertiginosas da linguagem criativa.

O preâmbulo se justifica pela inevitável comparação: Euclides Neto é uma espécie de Guimarães Rosa do sertão baiano. Mais especificamente, da região cacaueira que Jorge Amado tematizou em Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge de Ilhéus (1944). Em relação a este último, Euclides Neto foi menos um fabulador e mais um pesquisador da linguagem regional. Com perdas e ganhos para sua ficção.

Comercinho de Poço Fundo (1979) foi o quinto livro publicado por Euclides. Resiste um pouco à classificação como romance, pois a unidade entre suas partes é dada mais pela atmosfera regional do que pelo entrelaçamento entre as várias histórias contadas. Estas envolvem tanto personagens humanas como animais, e até uma imagem de São Benedito a que o narrador deu a primazia de protagonizar o desfecho.

O livro, em vez de ser dividido em capítulos, é segmentado por nove unidades denominadas “porteiras”. Ao longo dessas unidades, alternam-se episódios narrativos e digressões filosófico-metalinguísticas. Algumas delas são mais interessantes como ficção, caso das porteiras de números 5 e 6, nas quais são esboçados os caracteres mais marcantes do livro. E a caracterização é negativa, elaborada em chave irônica, pois o deputado Dr. Renato, típico advogado venal da província, e o coronel da política microrregional, “Seu” Beto, são personagens representativas de uma elite que conquista o poder e nele se perpetua à custa de desonestidades que até podem passar por tirocínio e mera esperteza.

O segundo merece maior destaque. Sua carreira de pequeno comerciante a latifundiário, ponteada por episódios de escroqueria e agiotagem, exemplifica o modelo preferido de enriquecimento no capitalismo brasileiro: mão de gato para se apropriar do alheio, habilidade retórica quando a situação exige e, em casos extremos de revolta da parte dos prejudicados, violência praticada por meio de agentes da lei devidamente cooptados. Um universo microrregional, enfim, que vale por metonímia muito competente do modus operandi político, moral e econômico das classes dominantes no Brasil.

Há também outro veio, eminentemente popular, de fabulação, composto de “causos” como o da menina pobre tomada pela riquinha como boneca e que acaba prostituta; o do jumento sexualmente descontrolado; e o do cavalo reprodutor que se converte em principal fonte de renda de uma fazendeira viúva.

Sobre todo o material narrativo, paira o brilhante levantamento da linguagem regional feito por Euclides Neto. É aí que ele merece, sem nenhum favor, ser comparado a Guimarães Rosa. Na maior parte do livro, a ênfase do escritor recai sobre a poesia da fala popular, que nomeia a prática das queimadas como “soltar joão vermelho no toitiço da ventania” — sendo o nome de gente um apelido para o fogo — e define o clarear do dia com este verso digno de Manoel de Barros: “Corujas e rãs xingavam o amanhecer.” Nessas passagens de voltagem poética, que às vezes se estendem por páginas, o narrador chega por vezes a perder um pouco a lembrança de que está contando histórias. Esse deslumbramento se explica, provavelmente, pelo fato de a composição do romance ter-se dado paralelamente à elaboração do precioso Dicionareco das roças de cacau e arredores (1997).

O que Comercinho de Poço Fundo talvez perca (e não é muito) em termos de ficção, ganha na documentação — tão frouxa em Jorge Amado — da paisagem regional e dos hábitos perversos da política interiorana. Euclides Neto, que foi fazendeiro e prefeito de um município da zona cacaueira, demonstra conhecimento profundo da lida com uma propriedade rural, do ponto de vista daquele dono de terras doentiamente avaro a ponto de fazer lembrar o Paulo Honório de São Bernardo (1934), por meio do qual Graciliano analisou a doença mental do latifúndio. Esse conhecimento de causa se patenteia sobretudo na sétima porteira, que consiste na transcrição de cartas do “Dr. Juarez”, produtor de cacau cuja vida é uma eterna vilegiatura, a vagar por várias estações de águas, ao administrador de sua fazenda.

A leitura do livro como romance, por vezes, ameaça emperrar. Mas o narrador logo se recupera dos mergulhos prolongados na poesia da fala e — principalmente — na metalinguagem. Comercinho de Poço Fundo merece demais ser conhecido por um público mais amplo do que os especialistas.

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