“Por que ler A casa dos espíritos, de Isabel Allende?”, por Fernanda Aparecida Ribeiro

Primeiramente, quero enfatizar que o romance não é um livro exotérico ou de exorcismo – não da maneira como concebemos esses gêneros ou discursos. Os maus espíritos que aparecem na narrativa são de outra categoria e, infelizmente, muito presentes na história da América Latina: dominação masculina, submissão feminina, servidão, autoritarismo, ditadura… Esses fantasmas precisam ser aprisionados pelas melhores armas que um povo pode ter:  o conhecimento e a escrita.

A chilena Isabel Allende estreia na literatura em 1982 com este romance, que dá voz a um grupo marginalizado pela história e que foi silenciado pelos discursos oficiais e pelas relações de poder. As mulheres são as protagonistas da narrativa e da escrita e, a sua maneira, representam as lutas das mulheres ao longo dos tempos.

A casa dos espíritos traz a luta de quatro gerações de mulheres de uma mesma família em meio às práticas sociais, culturais e sociais nas quais os homens controlam a vida das mulheres brancas, por meio de casamentos arranjados para conceber descendentes para perpetuar a família e preservar o patrimônio, e das mulheres camponesas, por meio de exploração sexual e de serviço braçal.

Esteban Trueba é o patriarca que domina a trama ficcional. De família humilde, ele queria casar-se com a filha de uma importante família, cujo pai era do ramo da política. Para ter as mesmas condições financeiras, Esteban busca ganhar dinheiro em uma mina e, depois, na reconstrução da fazenda paterna Las Tres Marías. Ele casa-se com Clara, a clarividente da família, que registrava muitas coisas em seus cadernos.

Clara sempre foi uma menina distinta das demais, não sabia cuidar dos afazeres domésticos, mas enxergava o mundo com outro olhar, interpretava os sonhos e previa o futuro. Seu modo alegre e leve de encarar a vida contrastava com a personalidade ríspida e brutal de seu marido em tratar as pessoas, levando-a ao mutismo, mas sempre registrando as coisas importantes em seus diários, “Los cuadernos de anotar la vida” (Os cadernos de anotar a vida). É com esses cadernos que Alba, sua neta, irá resgatar a história da família, com a ajuda do avô.

Fiz a primeira leitura do romance ainda na graduação em espanhol, no momento em que entrava em contato com outras narrativas do realismo mágico, como Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. O escritor colombiano cria uma cidade fictícia – Macondo – para ser cenário da narrativa e descrever passagens que identificamos com a história da América. Isabel Allende não nomeia a cidade ou o país nos quais os acontecimentos se desenvolvem, mas pelas referências podemos reconhecer a história do Chile ou mesmo da América Latina do século XX.

Mesmo que García Márquez tenha engendrado personagens femininas fortes em seu romance, o olhar de Isabel Allende é diferente para a composição de suas protagonistas. E é esse ponto o que mais me chamou a atenção: o olhar feminino fora dos estereótipos culturais e dos papéis sociais impostos às mulheres ao longo de tantos séculos.

Nívea, Clara, Blanca, Alba. Quatro gerações de uma família que lutam pela liberdade das mulheres, utilizando cada qual as armas que possuem e não permitindo que os homens as dominem. A trajetória de cada personagem é a trajetória da luta das mulheres, seus conflitos, suas conquistas e, principalmente, a busca da identidade da mulher e sua emancipação em todas as áreas da sociedade.

Isabel Allende publica o romance A casa dos espíritos em um momento que as mulheres escritoras começaram a ganhar mais espaço na literatura, como Laura Esquivel, Gioconda Belli, Ana Miranda etc. A escrita dessas mulheres denuncia a construção e a manutenção de práticas sociais e culturais que reverberam o conceito do patriarcado e se coloca com um ato de resistência frente às relações de poder que as subjugam.

Ler A casa dos espíritos ou qualquer outro livro escrito por uma mulher é um ato de resistência, de liberdade e de identidade, pois só o conhecimento e a escrita podem salvar um povo da ignorância e do medo.

Onde encontrar:
Livrarias e sites.