Teoria do adultério, por Eloésio Paulo

Visto por alto, o único romance publicado por Lúcio de Mendonça não parece mais do que uma daquelas manifestações tardias do Romantismo. O que fica evidente, à primeira leitura, é o dramalhão sentimentaloide, transformado em teoria lá pela metade do livro, quando o marido do título faz suas considerações sobre a culpabilidade dos consortes traídos. O título, por sinal, é pouco feliz, porque entrega de saída o destino moral da protagonista Laura, anunciando que ela desmentirá a imagem inicial, de moça sofrida e maltratada pelo destino.

Mas O marido da adúltera (1882), cuja última redação foi concluída em São Gonçalo do Sapucaí, ali nas vizinhanças de Três Corações, é daqueles livros injustamente esquecidos. Apesar de defeitos como certa contaminação pela retórica e a inconsistência psicológica de alguns personagens, merece releituras críticas que poderiam garantir-lhe um lugarzinho melhor na memória da literatura brasileira. Afinal, existem vários livros inferiores em vias de ser entronizados no famigerado “cânone”, principalmente agora que ele vem sendo assaltado por revisionismos de compromisso mais ideológico do que propriamente literário.

Como o célebre – por falar em justiça falha, porque é um romance bem fraco, só que escrito em alemão – Werther (1774), de Goethe, o livro de Lúcio de Mendonça é epistolar, ou seja, composto de cartas imaginárias. A diferença é que o autor dessas cartas não é só um apaixonado choramingas, o que permite ao leitor ver a história por ângulos diferentes e até conflitantes. Os signatários são própria Laura, o desafortunado Luís Marcos (que vem a ser o marido traído) e um amigo deste. As cartas são enviadas para um jornal que realmente existiu em Campanha e do qual o escritor fluminense foi colaborador, o Colombo.

Esse pingue-pongue de autores supostos confere uma dinâmica interessante à narrativa, mas, antes de entender como ele funciona, o pobre leitor terá que atravessar a primeira “carta de uma desconhecida”, vazada em estilo terrivelmente chato, bacharelesco e, por isso mesmo, inverossímil. Se vencer essa prova de fogo, encontrará logo adiante trechos de narrativa bem conduzida, com diálogos e descrições à altura dos melhores ficcionistas do século XIX.  O autor conseguiu, na maior parte do livro, ser menos palavroso e mais ágil que Alencar, às vezes irônico de um modo semelhante ao Machado de Assis da maturidade. O Bruxo do Cosme Velho, por sinal, talvez compareça em forma de personagem numa cena em que Laura viaja de bonde: aquele velhote com um olho torto e arregalado (a “gliscroidia” na qual insiste Peregrino Júnior em seu estudo Doença e constituição de Machado de Assis) bem pode ser uma traquinagem do ficcionista com seu colega na imprensa carioca e futuro confrade na Academia Brasileira de Letras.

Falamos de um romance de tese, o que levou alguns leitores a considerar O marido da adúltera aparentado ao Naturalismo. De fato, o comportamento de Laura não deixa de confirmar pressupostos que misturam hereditariedade e moralismo, a fórmula tão contraditória que estragou várias obras literárias promissoras. Para leitores (sobretudo, leitoras) sintonizados com as ideologias em moda, o honrado Luís Marcos caberá direitinho no figurino machista, mesmo tendo preferido o suicídio ao justiçamento da mulher infiel e de seu amante.

O enredo fincado na obsessão burguesa do adultério, no entanto, espraia-se por uma caracterização competente da sociedade brasileira do século XIX. A variedade de situações e personagens aproxima o livro, como documento de época, aos mais bem realizados romances do período. E, quanto ao problema da traição amorosa, não deixa de ser interessante pensar que Machado de Assis pode ter levado em conta, ao caracterizar seu Bento Santiago como grandemente merecedor de seus supostos chifres, a teoria do pobre Luís Marcos, de que o marido é sempre o maior responsável pelo adultério. Bom diapasão para profundas cogitações de quem queira ou necessite meditar sobre o tema.

Onde encontrar:
Livrarias e sebos