Com a palavra, o verme, por Eloésio Paulo

Quem está à beira do corpo? Inicialmente se pensa que é o verme, estranho narrador da primeira parte desse romance estranho. Mas, na segunda parte, o outro narrador nos dirá que é Vicente. A história propriamente é boa: o relato de um adultério e da vingança do “conje” traído. De novo, a velha obsessão burguesa com a condição de coisa supostamente possuível das mulheres, condição que, curiosamente, não se aplica aos maridos.

A principal obra do gaúcho Walmir Ayala é um daqueles livros que, pelo visto, muita gente compra e não lê. É fácil encontrá-la em oferta, nos alfarrabistas, sem qualquer marca de haver sido manuseada com intenção de leitura. Haveria uma razão verificável para isso? Falamos de um livro ruim?

Não, À beira do corpo (1964) pertence à categoria dos livros que ameaçam ficar bons, mas acabam não ficando. A narrativa começa bem, apesar de nos incomodar bastante a larva-narratriz. É ela que, insistentemente se qualificando como “eu, o verme”, inicia cada capítulo mencionando a parte do cadáver de Bianca à qual no instante faz sua visita. Mas esse verme nunca nos informa haver começado sua tarefa de decompor o invejável corpo da moça grávida, invejável corpo que a criada Flora cobiçará, num misto de veneração e despeito que a leva a preparar uma cilada mortal para a ama.

Bianca se casara com Vicente aos 17 anos. Amava-o com aquele amor ditado pelas conveniências provincianas: era o noivo mais à mão, e admitido pelo tirânico pai da moça, o italiano Piero. Mesmo sendo de condição modesta, Vicente atendia ao imperativo dos patriarcas que preferem – chega a ser curioso que esse lema paulino não seja mencionado no romance – as filhas casando-se quase crianças para não “abrasar” no fogo da paixão, leia-se, o delicioso inferno dos hormônios em ebulição.

Mas de nada adianta a precaução, pois a moça um dia vê o brigadista Sebastião (estamos em terras gaúchas, onde a polícia se chama brigada militar) e fica louca de paixão por ele. O tenente Sebastião é quase um Capitão Rodrigo, aquele de Erico Verissimo, homem-fatal que arrasta o coração feminino à mais irrestrita servidão. E fica armada a tragédia, com aquele ingrediente incomodamente queirosiano: a criada Flora, embora sendo jovem, não deixa de lembrar mais que o necessário a vilã Juliana, de O primo Basílio.

Walmir Ayala conduz essa primeira parte com bastante habilidade, se bem que suas tentativas de usar a linguagem poética nem sempre sejam muito bem-sucedidas; acabam, algumas vezes, em imagens desajeitadas do tipo da “alienação como uma agulha cravada no cérebro de um pássaro”. Mas há leitores que gostam dessas estranhezas de linguagem, embora talvez não suportassem um caso-limite do gênero – Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, por exemplo. Mas não seria por isso que À beira do corpo tem, ao que tudo indica, tantos leitores desistentes.

Tampouco será pelos defeitos mesmo de fatura, mais numerosos na segunda parte, onde o advogado metido a profeta faz as vezes de voz de uma verdade bíblica que pouco tem de realmente religiosa, a despeito de tantas citações do Antigo Testamento, umas claras e outras veladas. Esse advogado milita na defesa do assassino (pois Vicente mata a adúltera e o comborço), mas acaba convertendo-se num acusador meio confuso: parece-lhe que todos têm culpa pelo episódio, menos os próprios figurantes da tragédia. Com a exceção do velho Piero, que emprestara a arma do crime e exortara o marido traído a vingar-se.

Tudo muito esquisito. Esquisito como ninguém preocupar-se com o fato de Bianca levar no ventre uma gestação de sete meses. Só quem se lembra disso é Vicente, em sua rememoração solitária e já na véspera de ser absolvido – como se o próprio autor do livro muito tarde se desse conta de uma inverossimilhança psicológica de seus personagens. Ele, Vicente, um ferreiro tão habitual na leitura de seu jornal como o engenheiro Jorge no romance de Eça.

Para gente do Direito é que talvez a leitura de À beira do corpo, a exemplo de tantos filmes americanos, seja um exercício muito válido. O tribunal em que Vicente é julgado, sem nenhum sinal da presença de um júri, tem uma atmosfera de sonho em que as funções de depoente, defesa e acusação se misturam de maneira a quase lembrar Kafka; porém, um dos maiores méritos de Kafka foi compreender a sintaxe narrativa dos sonhos, e essa qualidade falta ao escritor gaúcho.

No fim das contas, vale a pena ler o livro pelo que ele tem de bom (e não é pouco), mas sobretudo, talvez, para compreender que um romance bem escrito não é necessariamente um bom livro. A gente não acha erros de gramática em À beira do corpo, ao contrário do que ocorre na maior parte da ficção brasileira posterior à década de 1960 e, sobretudo, na contemporânea.

Onde encontrar:
Livrarias e sebos