A importância de não ser Franz, por Eloésio Paulo

Não é que o escritor conte uma história sem pé nem cabeça. É que os pés e a cabeça, como num quadro cubista, talvez não estejam nos lugares previstos. O agressor (1943) já foi comparado também a Beckett e Dostoiévski, mas seu parentesco mais evidente no tronco da literatura ocidental é Kafka. Há mesmo um capítulo, “Flores no quarto”, em que o protagonista acorda numa situação muito parecida à do Joseph K. de O processo: deparando com dois desconhecidos introduzidos, sabe-se lá como, em seu quarto.

Mas Rosário Fusco, que tem toda uma obra de poeta, crítico e ficcionista por trás desse romance, não se reduz a discípulo brasileiro de Kafka. Sua escrita é primorosa e sua condução do enredo é muito competente e até, sob certos aspectos, original. Ocorre que, diferentemente do escritor tcheco, o mineiro de São Geraldo – cidadezinha situada nas redondezas de Juiz de Fora – não tem um pressuposto que encaminhe a conclusões lógicas as situações inusitadas que cria. Em Kafka, tudo é rigorosamente lógico, menos a razão por que as coisas acontecem.

O agressor se inicia com dois episódios intrigantes, a respeito dos quais faltam informações e que, por isso mesmo, deixam o leitor no escuro. O que diria a carta recebida por Amanda, criada de quarto da pensão onde mora David, o personagem principal? Logo depois, o que seria aquele barulho que David, na chapelaria onde trabalha, identifica como miados de gato? A partir dessas duas perguntas, sua vida começa a complicar, primeiro porque ele se vê compelido a procurar um desconhecido de nome Nicolau, depois porque a suposição de que poderia haver gatos no depósito da chapelaria o indispõe com seus patrões.

O dono da chapelaria, por sinal, chama-se Franz (o mesmo prenome de Kafka). E, também como nas obras do judeu que escrevia em alemão numa das capitais mais importantes do império austro-húngaro, a belíssima Praga, existem no livro de Fusco cenas claramente estruturadas pela observação da sintaxe narrativa dos sonhos. Mas também aqui há uma diferença: o absurdo está mais na mente de David do que no mundo exterior, onde as outras personagens parecem ter razões bem claras para fazer tudo o que fazem. Um pouco além da metade do relato, o narrador entrega, de passagem, seu lema: “toda coisa que o homem concebe é realizável, realizar-se-á ou já se realizou”.

A essa altura do enredo, o leitor já estará tão envolvido quanto David na tentativa de entender coisas estranhas como o aparecimento de um bolo de aniversário naquele quarto de pensão. A situação inicial se complicou bastante, com a certeza do protagonista de que está sendo perseguido e com a denúncia que ele faz contra Franz na polícia, por supostamente pretender matá-lo. À insinuação de intenções eróticas da parte de Amanda também se somam relações ambíguas com uma certa senhora Schneider, moradora do apartamento que fica em frente ao quarto de David, mas nada ocorre de fato – apenas o périplo diário em busca de respostas e soluções para problemas que só vão se complicando. Novas peças são encaixadas nesse puzzle, e de maneira bastante hábil.

Os diálogos são, em sua maioria, ágeis, mas há passagens com discursos bastante longos, até um pronunciamento de David que ocupa mais de uma página e, de modo inexplicado, causa a morte de Franz. Há também passagens a que parece faltar um desfecho, mas nada disso prejudica o andamento da intriga principal, que – mais uma vez à diferença de Kafka – o próprio autor parece não saber qual é ou não pretender revelá-la ao leitor. Tudo isso fica, de certo modo, justificado pelo desfecho, que por sua vez explica o título. Mais uma vez, o que falta é a razão dos fatos; e David, cuja psicologia é bem vizinha da paranoia, resolve finalmente (ao que parece) vingar-se do mundo pela falta de sentido deste, escolhendo para vítima expiatória a mulher que naquele momento lhe parece encarnar a perversidade espalhada por tudo e todos.

Não virá ao caso (ou virá?) lembrar que esse discípulo assumido de Kafka também trabalhou no famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura getulista. Mas por que o escritor mineiro permanece, em vista de suas inegáveis qualidades de ficcionista, injustamente esquecido enquanto o tcheco é cada vez mais lido em todo o mundo civilizado ou no que resta dele? Talvez a reposta consista nisto, apenas: Kafka é considerado um profeta espantoso por haver articulado, em sua obra, a maneira como os fatos cotidianos escondem o absurdo que subjaz ao mundo burguês –  compreendia perfeitamente o que fazia. Rosário Fusco fez girar em seu romance um maquinismo semelhante, mas sem chegar a suspeitar das razões da falta de significado do mundo.

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