Graciliano como personagem, por Eloésio Paulo

Um escritor que também é teórico corre, ao escrever ficção, sério risco de transformá-la em ensaísmo. Não escapou a esse risco o crítico Silviano Santiago, mineiro de Formiga, no caderno de notas imaginário Em liberdade (1981), que mesmo assim é seu melhor romance e um dos mais relevantes escritos sob o regime militar de 64. O escritor correu, ainda, o risco adicional de transformar em personagem ninguém menos que Graciliano Ramos, autor tão claro quanto difícil, em razão da profundidade oculta sob essa clareza.

O diário do Graciliano ficcional começa no dia 14 de janeiro de 1937, dia de sua libertação depois de dez meses preso sem acusação formal. Esse episódio de sua vida seria a matéria do livro Memórias do cárcere (1953), mas no romance em questão Graciliano se recusa a escrever sobre ele; esse é, aliás, um dos grandes temas da primeira parte das notas, que cobrem um período de dois meses e meio.

Bastante aclamado na época de seu lançamento e razoavelmente bem lido até hoje, Em liberdade traça paralelos entre três épocas: a própria agonia do regime militar, época em que as memórias de ex-guerrilheiros como Fernando Gabeira promoviam uma espécie de catarse nacional (sendo nisso reprovadas, ainda que implicitamente, por Silviano Santiago); a gestação do Estado Novo varguista, que coincide com a queda de Graciliano na trama kafkiana da prisão sem processo; e o dito suicídio de Cláudio Manuel da Costa às vésperas de seu interrogatório pelos encarregados pela Coroa portuguesa da apuração sobre os envolvidos na Inconfidência Mineira.

Podem parecer episódios incomensuráveis entre si, mas o ficcionista os ligou por meio da discussão sobre a problemática situação do intelectual brasileiro frente ao poder do Estado. As notas atribuídas a Graciliano tratam principalmente disso: o escritor alagoano, recém-saído da cadeia, não tem emprego nem lugar para morar, vivendo de favor na casa de seu colega José Lins do Rego. O cotidiano que ele relata na primeira parte do romance, antes de mudar-se para uma pensão, consiste em boa parte nas reflexões sobre essa situação de pária social do politicamente engajado à esquerda, ao mesmo tempo em que desenha um panorama da intelectualidade brasileira da época. Frequentam as páginas do diário Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e vários outros expoentes da cultura, sobretudo da moderna literatura brasileira.

É aí que avulta um lado pouco evidente no Graciliano real: o teórico, talvez uma sombra do crítico-autor do diário suposto. Essa dimensão do romance o faz pouco interessante para leitores que não cuidem do que esteja além do drama das pessoas comuns. Não que Graciliano não sofra a doença (sequelas do encarceramento no presídio da Ilha Grande, em especial) e a humilhação como qualquer indivíduo de carne e osso, mas a especulação ocupa em suas notas um espaço desproporcional, transformando o personagem em homo theoricus mais do que seria de esperar pelos habituados aos principais livros que o autor escreveu no mundo real. Com isso, Em liberdade termina sendo mais leitura para interessados na questão político-filosófica do que na condição humana. Um capítulo ocupado pela conversa entre o protagonista e Dona Naná, mulher de Zé Lins, evidencia particularmente o derrame da teoria sobre a ficção.

Mas existe um enredo. Ele trata do reencontro de Graciliano com sua mulher, Heloísa, que deixara em Alagoas os filhos do casal e viera para o Rio de Janeiro lutar pela libertação do marido. Também trata do reencontro do escritor com o Rio de Janeiro, que conhecera na juventude. Em meio a sua readaptação à liberdade, o Graciliano inverossimilmente grato e otimista das primeiras páginas vai dando lugar ao homem problemático e problematizante (que constitui o próprio estofo de sua obra), a estranhar-se com sua mulher e com o generoso anfitrião, a primeira por querer fazê-lo um quadro oficial do Partido Comunista, o segundo por praticar uma ficção onde a injustiça social é, em sua opinião, atenuada.

Na segunda parte do diário, escrita enquanto Graciliano morou sozinho num quarto de pensão para onde depois viriam Heloísa e as duas filhas menores do casal, ele esboça uma adequação, ao menos parcial, ao papel que a sociedade capitalista lhe reserva. Começa a mover-se no sentido de conseguir trabalho regular, mesmo que o valor recebido por um artigo mal seja suficiente para comprar um guarda-chuva. É aí também, na solidão de um quartinho miserável no bairro do Catete, que começar a imaginar um conto sobre os últimos dias do poeta Cláudio Manuel da Costa. Mas a nota final, que traz a notícia da chegada das três novas moradoras de seu aposento, sugere que o escritor jamais conseguiria fazer a narrativa planejada. Ele fez, isso sim, muito tempo depois, as memórias da cadeia, cuja solicitação pelos amigos lhe aparecia como o desejo de fazer dele uma espécie de mártir, papel que recusava enfaticamente.

É um livro bem urdido, Em liberdade. Seu desfecho súbito e meio desajeitado não deixa de ser verossímil: é assim que costumam ser os desenlaces nesta vida. O maior problema do romance é alguém ter-se proposto a escrever como Graciliano, que jamais escreveria “chuchu” com x nem “via ela”. Aí reside uma inverossimilhança praticamente inevitável, pois imitar o estilo do autor de Angústia e Vidas secas era tarefa bem mais difícil do que entrar imaginariamente em sua vida.