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“Beber menos, mas beber melhor”: professor e cervejeiro Gabriel Hornink, coordenador do projeto “Ciência com Cerveja”, fala sobre a produção, os tipos e o mercado da bebida alcóolica mais consumida no país

Não há dúvidas sobre qual bebida alcóolica é mais consumida no Brasil: a cerveja! Mas, o que pode ser um problema quando consumida com abuso, também é um prazer para muitos, além do setor cervejeiro se apresentar como uma grande possibilidade de inserção profissional para graduados em várias áreas. Na conversa que tivemos com o professor Gabriel Gerber Hornink, docente do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e coordenador do projeto de extensão “Cerveja com Ciência”, podemos conferir as possibilidades do setor e a contribuição do projeto e da disciplina “Ciência da Cerveja” para quem já se aventura nessa prática de forma profissional ou caseira. O docente também explica os tipos de cervejas que podem ser consideradas como dicas importantes para os consumidores. Enquanto a bebida é aconselhável apreciar com moderação, a nossa entrevista da semana pode ser apreciada sem moderação! Confira:

Discente Vivian Santana em atividade de pesquisa na área de produção cervejeira (foto: Gabriel Hornink)

– Como surgiu a ideia de criar um projeto de extensão sobre a “cerveja”?
O projeto de extensão tem sua origem na disciplina “Ciência da Cerveja”, que ofereço desde 2017 como optativa para diversos cursos, sendo que a própria disciplina teve origem na procura por cursos da área no período em questão.

Contando um pouco da disciplina, em 2016, alguns alunos me procuraram para saber mais sobre a produção de cerveja, uma vez que eu estava estudando o assunto desde 2013, produzia cerveja em casa desde 2015 e comentava nas aulas de Bioquímica com os alunos, inclusive contextualizando alguns conceitos da Bioquímica a partir da produção cervejeira.

A disciplina teve uma grande procura, sempre maior que o número de vagas e com pessoas da comunidade externa me escrevendo e pedindo para assistir/participar da disciplina. Com isso, percebi que somente a disciplina não seria suficiente para suprir a demanda que a comunidade tinha sobre os conhecimentos da produção e da ciência cervejeira.

Sabia que já existiam muitos canais na internet sobre cerveja e uma quantidade gigantesca de materiais disponíveis, por isso pensei que dar essa fundamentação científica, aplicada à produção, poderia ser um diferencial para a inovação e a melhor qualidade da bebida produzida.

Nesse contexto, em 2019, surge o projeto “Cerveja com Ciência” e, no mesmo ano, lanço o “Glossário cervejeiro: da cultura a ciência”, com o cervejeiro Gabriel Galembeck, abrangendo mais de 700 verbetes sobre esse universo. Acesse o Glossário.

Em 2019, criamos um grupo público no Facebook para disseminação e diálogo sobre ciência cervejeira e tivemos a oportunidade de alguns eventos na UNIFAL-MG, como oficinas envolvendo a produção caseira e a análise sensorial. Com a equipe do projeto, iniciamos a produção de infográficos cervejeiros, buscando sempre essa relação entre o conhecimento científico e a aplicação prática na produção. A partir do grupo no Facebook, iniciou-se uma interessante relação com a comunidade, destacando professores que também trabalham com a temática e, a partir desses contatos, surgiram novas parcerias, como a parceria com os professores Carlos Frederico Castro, do Instituto Federal Goiano (IFGoiano), e Alex Uzêda, do Instituto Federal do Sul de Minas – Campus Machado (IFSULDEMINAS).

O Glossário está disponível para download na página da UNIFAL-MG. Clique e acesse!

– O glossário teve muitos acessos? Recebeu algum feedback de algum leitor, produtor ou apreciador de cerveja?

O glossário ficou disponível em vários canais, como no site da UNIFAL-MG e no Google Books. Tivemos contato de pessoas que o utilizaram e gostaram da obra pela abrangência e profundidade em diversos verbetes. Inclusive, o glossário já foi citado em diversos trabalhos, além de ter sido divulgado por diversos sites e blogs sobre cerveja. Somente no Google Books, foram 2053 acessos, somando 29.349 páginas visualizadas.

– Com o projeto é possível mostrar o potencial de empregabilidade do setor cervejeiro? Um setor que pode empregar profissionais com formações diversas.

O mercado cervejeiro cresceu muito nos últimos. Entre 2013 e 2020, o número de cervejarias registradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) subiu de 194 para 1383, o que mostra um processo de mudança cultural sobre o consumo de cerveja. Grande parte dessas cervejarias são microproduções com cervejas diferenciadas, buscando inovar e trazer novas possibilidades de consumo para o público. Esse crescimento também fez com que a demanda por profissionais com formação na área cervejeira também crescesse, destacando o fato de que, para funcionar legalmente, essas empresas precisam ter um responsável técnico. Entre os profissionais, estão os biólogos, químicos, biotecnologistas, farmacêuticos, entre outros. Nesse sentido, durante o projeto, procuramos desenvolver ações que ampliem a qualificação desses profissionais e demais interessados. Além disso, abrimos uma via de mão dupla para que esses interessados também tragam suas ideias e demandas, bem como contribuam para o crescimento do projeto. Temos uma ex-aluna do curso de Química da UNIFAL-MG, da disciplina “Cerveja com Ciência”, que participou do projeto de extensão esse ano guiando os participantes em uma visita virtual em sua própria cervejaria. A Bianca Vitto é uma mestra cervejeira, empreendedora e inovadora no mercado cervejeiro e sócia na Dela Cervejaria. Uma ação como essa buscou mostrar a importância da formação do estudante para a construção de sua própria cervejaria. Outro contato que fizemos em 2019 foi com o Francisco Eduardo de Carvalho Costa, proprietário da Pós-Doc Cervejaria, que também participou do projeto este ano e foi responsável pela visita guiada em sua cervejaria. Ele tem uma formação acadêmica muito sólida (graduação e pós-graduação) e tem aplicado esses conhecimentos para inovar em sua produção, destacando o uso de leveduras alternativas no processo. Ainda neste ano, com o professor Alex Uzeda, tivemos a visita guiada na cervejaria-escola do IFSULDEMINAS, em Machado, destacando a importância da formação do profissional para sua inserção no mercado. Esses são apenas exemplos de atividades envolvendo a comunidade e que destacam a importância da formação para inovação no mercado e para a construção de seu próprio negócio ou como diferencial para sua empregabilidade no mercado cervejeiro.

A disciplina “Ciência da Cerveja” mostra ao estudante os processos de fabricação da cerveja. Na foto, equipamento montado para aulas e fervura do mosto. (Fotos: Gabriel Hornink)

– Um caso recente de uma cervejaria mineira sobre contaminação do produto teve grande repercussão nacional devido aos danos à saúde e morte de consumidores. Esse caso mostra que os cuidados, entre eles o conhecimento científico, devem ser uma premissa nesse ramo?

Em toda profissão é vital ter conhecimentos sólidos sobre o que se está fazendo, além de procedimentos padronizados para garantir a segurança e a qualidade do produto. Na produção cervejeira não é diferente: saber profundamente o que está fazendo, criar fluxos da produção, análise de risco e procedimentos operacionais padrão (POP) reduzem a probabilidade de problemas.

– Na sua avaliação, o que motiva os estudantes a se interessarem pelo projeto “Cerveja Com Ciência”?

Os interesses pelo projeto são diversos, mas uma parte significativa tem interesse em produzir cerveja em casa (home brewing), sendo que muitos que ingressaram no grupo no Facebook já produzem cerveja em casa ou mesmo tem ou trabalha em uma microcervejaria. Há também os interessados em aprofundar os conhecimentos pensando em sua empregabilidade na área (interesse em atuar na área) e uma parte do público interessada em conhecer mais sobre o universo cervejeiro, como consumidores mais conscientes.

– Algum participante também buscou produzir a própria cerveja após as aulas e as atividades do projeto?

Sim. Tivemos vários alunos que produziram cerveja em casa, inclusive alguns trouxeram amostras para eu fazer a avaliação, para que pudessem aprimorar ainda mais a produção. Tive relato de alunos que produziram e começaram a servir para seus familiares, sendo que estes apreciaram muito suas produções. Como relatei, tivemos uma aluna que hoje é proprietária de sua própria cervejaria.

[…] a moderação é primordial quando falamos de bebidas alcoólicas, principalmente pelo fato de seu consumo exagerado ou crônico poder acarretar diversos problemas para saúde. Dessa forma, é importante termos o consumo consciente de cervejas, conhecendo e compreendendo os benefícios e malefícios […] Gabriel Hornink


– Hoje, muitas marcas, até as marcas mais “populares”, lançaram versões “puro malte”. O que vem a ser isso?

O termo puro malte vem sendo muito difundido pelos microcervejeiros e mais recentemente pelas grandes empresas, como uma forma de diferenciar e valorizar seu produto como um indicativo de sua qualidade. A legislação brasileira estabelece que, para ser considerado puro malte, a cerveja deve ter 100% de malte de cevada. Dessa forma, é vedado o uso de outros adjuntos cervejeiros, como trigo, arroz, sacarose e milho. É uma discussão complexa, pois o fato de uma cerveja ser puro malte não implica maior qualidade ou diferencial sensorial na bebida. Há vários fatores que influenciam, como os tipos de maltes de cevada utilizados, a escolha, quantidade e qualidade dos lúpulos, a água, levedura empregada e todas variáveis do processo produtivo. Resumindo, é possível ter excelentes cervejas que não são puro malte, assim como cervejas de qualidade inferior puro malte. Destaco que, no universo cervejeiro, falamos que há quatro escolas cervejeiras: a alemã, a inglesa, a americana e a belga. É a escola alemã que contextualiza a “Lei de Pureza Alemã”. A escola belga, por exemplo, possibilita o uso de diversos insumos, desde condimentos até caramelo e, ainda assim, são conhecidas pela excelente qualidade de suas cervejas.

– Qual é o ponto principal para uma cerveja ser considerada de “boa qualidade”? Existe cerveja “boa” e “ruim”? Ou é uma questão de gosto?

Existem vários elementos que podemos pensar quando falamos em qualidade da cerveja, e acabamos por misturar, no conceito de qualidade, questões sensoriais e questões técnicas da qualidade. No quesito sensorial, realmente é uma questão de gosto, que também pode ser transformado ao longo da história do indivíduo, pois envolve elementos culturais. Por exemplo, um indivíduo que não gosta de cervejas mais amargas pode, após algum tempo, apreciá-las e assim por diante. Há casos também em que o consumidor não teve a experiência prévia com diversos sabores e texturas e, ao se deparar com estes, pode iniciar um processo de aceitação ou não e preferência.

Outra questão é a qualidade do ponto de vista mais stricto, pois envolve critérios como: ausência de contaminantes nos insumos, como micotoxinas nos maltes; ausência de contaminantes da água, assim como o controle dos sais minerais presentes na água para se obter um resultado adequado; padronização sensorial dos lotes; identificação de gostos indesejados (off-flavors) no estilo avaliado. Destaco que a identificação dos off-flavors ajuda na compreensão da origem do problema. Há off-flavors relacionados à contaminação microbiológica durante a produção por problemas no processo (como controle de temperatura), escolha da cepa de leveduras etc. Nesse caso, podemos sim dizer que há cervejas boas e ruins. Por exemplo, uma cerveja com acetaldeído, que lembra odor de maçã verde, em alta concentração poderá ser considerada uma cerveja ruim, tendo em vista os efeitos negativos desse composto.

– O que, na prática, faz o estilo da cerveja ser diferente da outra?

Há um conjunto de elementos que caracteriza cada estilo de cerveja, sendo que, inicialmente, podemos agrupar os estilos de cerveja em ales (fermentação de topo), lager (fermentação de fundo) e lambics (fermentação espontânea). Uma das principais diferenças entre essas está na temperatura de fermentação e nos microrganismos utilizados. Dentro de cada um desses tipos de cerveja encontramos os estilos. Há sistematizações dos estilos, sendo o guia do BJCP (Beer Judge Certification Program) uma delas. Pode-se encontrar o guia ou mesmo aplicativos que trazem os estilos segundo o BJCP. Para cada estilo serão apresentados os elementos que os caracterizam, como odores, aromas, gostos, retrogostos, carbonatação, cor etc. Para cada estilo também são apresentadas estatísticas básicas para sua produção, como a faixa de cor, faixa de amargor, faixa de percentual alcoólico e faixa de densidade inicial da bebida (antes de fermentar) e final (após fermentar). Destaco que o guia BJCP ou mesmo o BA (brewers association) são muito utilizados em competições internacionais ou nacionais e nem sempre as cervejas comerciais seguem a nomenclatura apresentada nestes. De toda forma, esses guias são referências que nos ajudam a pensar nos estilos cervejeiros, e considero que não devemos olhar para eles como grades que nos impedem de criar.

Gabriel Hornink produz a sua cerveja em casa. Na foto, processo de moagem do malte. (Foto: Gabriel Hornink)

– Conte-nos sobre a cerveja do Gabriel Hornink.

Minha produção atual é para consumo próprio e envolve uma cozinha cervejeira tribloco, ou seja, tenho três caldeirões em linha, na mesma altura (uso bombas para passar a água ou o mosto de uma para outra), sendo uma para mosturação, uma para água da lavagem e uma para fervura, com a capacidade de produção em torno de 50 – 55 litros.

Gosto de muitos estilos de cervejas, mas tenho preferência pelas escuras, como porters e stouts, assim como cerveja de trigo escura no estilo alemão, a weizen dunkel.

– Por que você gosta mais desse tipo de cerveja? Tem a ver com o sabor ou harmonizações?

Eu gosto de cervejas que apresentam os sabores de café, caramelo, chocolate amargo e que tenham um amargor de equilibrado para mais amargo, além da cremosidade e corpo que algumas cervejas nesses estilos apresentam. No caso das cervejas de trigo escura, além do leve sabor de caramelo, combinam-se os odores/aromas de banana e cravo, geralmente com bebidas apresentando maior corpo e cremosidade da espuma. Apesar de gostar desses estilos, procuro variar nos estilos que degusto, buscando ampliar minha experiência sensorial, além de buscar harmonizar a bebida com o alimento, seja por complementaridade, contraste ou corte.

– Já ouvi a frase “Beber menos, mas beber melhor”. Essa percepção é aplicável às cervejas?

Sim. Ouvi várias vezes a frase e até já a pronunciei. Eu considero que a moderação é primordial quando falamos de bebidas alcoólicas, principalmente pelo fato de seu consumo exagerado ou crônico poder acarretar diversos problemas para saúde. Dessa forma, é importante termos o consumo consciente de cervejas, conhecendo e compreendendo os benefícios e malefícios e, nesse caminho, optar por bebidas com melhor qualidade e com melhor perfil sensorial (a questão sensorial depende de cada pessoa), ou seja, beber menos, mas beber melhor.

O professor prefere cervejas escuras, como porter, stout e weizen dunkel. (Foto: Arquivo Pessoal)

– O que você recomenda aos leitores do Jornal UNIFAL-MG que querem se aventurar no mundo da produção de cerveja?

Após vários anos de contato com muitos microcervejeiros e cervejeiros caseiros, a primeira coisa que eu recomendo é… estudem… estudem o processo, os equipamentos, os insumos e, nesse caminho, ingressem em grupos sérios de cervejeiros nas redes sociais, em canais sobre ciência e produção de cerveja no YouTube, acessem materiais de fonte confiável, como do projeto “Cerveja com Ciência”. Existem muitos materiais de qualidade questionável, por isso é importante saber onde buscar. Antes de investir em sua produção própria, procure algum colega que produza para acompanhar a produção, ter ideia na prática do processo, do tempo que utilizará para produzir sua cerveja, ou seja, ver se é o que pensava e se está disposto a produzir sua própria cerveja, pois já tive alunos que, após participar da produção da cerveja durante a disciplina, falaram que imaginavam ser muito mais simples e que preferiam comprar pronto. Você poderá, inclusive, fazer uma produção em nanoescala, usando materiais simples, visando colocar a mão na massa e ter um pouco de vivência sobre o que é fazer cerveja. A partir dessa fundamentação, tendo em vista o que você deseja (estilos, volume e recurso existente para se investir), você terá condições de avançar em sua própria produção. Lembrando que, quando falamos em produção comercial, é importante o desenvolvimento de um plano de negócios e, nesse sentido, o Sebrae tem muito material que poderá auxiliar nessa questão.

– E para os consumidores?

Quando conhecemos mais sobre os produtos que consumimos, temos melhores condições de avaliar sua qualidade e poder escolher melhor o que bebemos. Dessa forma, recomendo, de forma geral, que o consumidor conheça um pouco sobre os estilos de cerveja que consome, assim como alguns elementos da análise sensorial, incluindo técnicas de degustação e alguns elementos que podem indicar erros de produção ou a qualidade geral da bebida. Por exemplo, usar copos que foram lavados há muito tempo (com pó) impactará na espuma de sua cerveja, assim como a temperatura que servimos a bebida poderá ressaltar ou suprimir sensações da bebida, como nos odores e gostos. Há alguns sabores que não são desejáveis e podem indicar algum erro de produção, como os odores de solvente, de band-aid, maçã verde etc. A ideia não é complicar a vida dos degustadores de cerveja, mas fornecer elementos básicos para que possam apreciar a bebida da melhor forma possível.

Acesse mais informações sobre o projeto de extensão “Cerveja com Ciência”

Sobre o entrevistado, acesso o currículo Lattes.

Contato com o professor Gabriel Hornink: gabriel.hornink@unifal-mg.edu.br