A carestia, os pobres e o nada

Thiago Fontelas Rosado Gambi

Basta colocar o pé em qualquer supermercado, feira, quitanda ou farmácia para constatar a disparada dos preços no Brasil. Para motoristas e motociclistas, é só parar ao lado de uma bomba de combustível para perceber o estouro dos valores. A inflação afeta a vida de todos, mas é ainda mais perversa para os pobres. A classe média reclama com razão dos preços altos, porém, frequentemente se adapta a eles, espreme um pouco o orçamento, deixa de poupar alguns tostões, e assim mantém o seu padrão de consumo apesar da carestia. Meio quilo do café de primeira qualidade custava dezoito reais, agora custa vinte e oito e não deixa de ir para o carrinho dessa classe. A reclamação aumenta na medida dos preços, mas na prática vale a capacidade de adaptação de quem tem alguma folga no orçamento.

Nem de longe é essa a realidade do pobre. Diante de um aumento de preços, sua primeira reação é substituir. Substitui-se o frango pela salsicha ultraprocessada, a carne pelo ovo, o leite pelo achocolatado aguado, com todas as consequências nutricionais decorrentes do que o pouco dinheiro pode comprar. A substituição mais emblemática e dramática dessa última onda inflacionária foi a troca do gás de cozinha pela lenha.[i] Milhares de famílias passaram a usar o velho fogão de lenha, não por saudosismo ou romantismo, mas por necessidade. Se antes a preocupação era conseguir o feijão para colocar na panela, agora o problema é o gás para acender o fogão. Pioramos muito e descemos vários degraus da escada civilizatória em anos recentes.

A substituição nem é o pior efeito da inflação, embora signifique concretamente empobrecimento. Muitas vezes o pobre é obrigado simplesmente a deixar de consumir, encarar a desnutrição e a lazeira, como indica o retorno do Brasil ao infame mapa da fome da ONU.[ii] A consequência surreal, visível e palpável, é a barbárie escancarada nas filas dos ossos, sinal da falência econômica e moral da atual sociedade brasileira.[iii] Enquanto isso, a renda nominal do brasileiro estagnou, e combinada com a inflação, significa perda de poder de compra, ou seja, no geral, ficamos mais pobres.

O baixo crescimento econômico e a alta taxa de desemprego contribuem para a queda do rendimento do trabalho.[iv] A proliferação de empregos de baixa qualidade e, consequentemente, com menor remuneração, resultado das flexibilizações inadequadas da reforma trabalhista, também ajuda a entender a trajetória descendente dessa renda. Para achatá-la ainda mais, houve um salto inflacionário derivado de pressões externas – como a reestruturação da oferta de matérias-primas e bens intermediários no rescaldo da pandemia, e a guerra na Ucrânia, que pressiona fertilizantes, alimentos e combustíveis – e intensificado por ações e inações internas.

Primeiro, a ausência de uma política emergencial de preços de combustíveis capaz de mitigar o efeito do choque externo.[v] A manutenção dos preços de mercado para combustíveis nessa condição excepcional contribuiu para elevar o custo de vida geral e mais ainda para parcelas mais vulneráveis da sociedade, como a alta da gasolina e do álcool para os motoristas de aplicativos e do gás de cozinha para os miseráveis, com as consequências sociais dramáticas já mencionadas.

Em seguida, a desestruturação das políticas de estoques reguladores e agricultura familiar em curso desde 2017, aprofundada atualmente no rastro de destruição de qualquer política pública minimamente estruturada, também ajuda a explicar o aumento dos preços dos alimentos com efeitos drásticos sobre os mais pobres. São esses, sem dúvida, os que mais sofrem com as vicissitudes da conjuntura e a inépcia e irresponsabilidade expressas num governo ausente nas questões importantes para o desenvolvimento econômico e social do país, e excessivamente presente nos assuntos paroquiais, interessantes apenas para uma excêntrica minoria da população.

Para piorar a situação, e especialmente desviar a atenção das questões importantes, somos obrigados a conviver com a fabricação diuturna de crises institucionais que turvam as expectativas para os que ainda lidam com algum futuro e dificultam ainda mais a vida para quem o horizonte é a próxima refeição. Nessa toada, não se pode vislumbrar qualquer cenário otimista seja pelas condições externas ou internas. Não se deposita esperança no nada.

[i] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/09/10/fogao-a-lenha-vira-hit-com-alta-do-gas.htm. Também aumentou, recentemente, o número de queimaduras decorrentes do uso de álcool líquido em substituição ao gás de cozinha: https://www.metropoles.com/materias-especiais/cicatrizes-da-fome-acidentes-com-alcool-liquido-crescem-com-crise-do-gas

[ii] http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2022/02/Boletim-14-O-Brasil-de-volta-ao-Mapa-da-Fome.docx-1.pdf

[iii] https://www.nexojornal.com.br/podcast/2021/09/30/Como-a-fila-do-osso-virou-s%C3%ADmbolo-da-mis%C3%A9ria-nacional

[iv] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/taxa-de-desemprego-e-a-menor-desde-2016-mas-renda-cai-88-em-um-ano.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/04/renda-dos-trabalhadores-mais-ricos-cai-16-na-pandemia.shtml

[v] https://www.ibp.org.br/observatorio-do-setor/snapshots/maiores-produtores-mundiais-de-petroleo-em-2020/ e https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/04/20/brasil-tem-gasolina-acima-da-media-mundial-veja-lugar-com-preco-mais-alto.htm