“Neurastenia ao telefone”, por Eloésio Paulo

Ainda bem que Dulce, a protagonista de A voz submersa (1984), tem um marido rico, metido em falcatruas governamentais propiciadas pela sociedade com um oficial do Exército. A chamada telefônica transcrita pelo narrador do romance de Salim Miguel custaria uma fortuna, e as 105 páginas que ela ocupa são a medula do livro: não se poderia economizar nesse quesito. O longo telefonema foi o recurso que o autor, catarinense nascido no Líbano e morto em 2016, aos 92 anos, encontrou para expor a vida de Dulce. Ela é uma mulher madura (pelo menos, deveria) e portadora de um trauma de infância completado por todo um catálogo de sintomas neurastênicos.

O romance é daqueles experimentos, muito em voga a partir do endurecimento do regime militar, cuja estrutura narrativa fragmentária era um modo de negacear com a censura. Não por acaso o assassinato do estudante Edson Luís na passeata dos 100 mil, em 1968, é um dos bordões tangidos insistentemente pelo despejo verbal de Dulce, que demonstra ter ficado, apesar de sua alienação típica de classe média alta, horrorizada com as cenas de barbárie no centro do Rio de Janeiro – uma espécie de senha para que se escancarasse a natureza ditatorial da “revolução” de 64, cujos horrores parecem ter, ultimamente, caído no esquecimento (será por isso que querem acabar com as aulas de História no ensino médio?).

A voz submersa é daqueles livros que exigem persistência do leitor. Seus elementos constituintes vão-se revelando aos poucos em meio ao jorro que é a fala de Dulce. A forma da narração, como é comum em romances desse tipo, inicialmente causa estranhamento, mas aos poucos se percebe que ela faz sentido e era necessária ao projeto narrativo do autor; o ritmo logo se normaliza para a percepção do leitor, ficando a leitura mais fluente.

A interlocutora de Dulce é sua mãe, que vive bastante isolada em um apartamento no bairro carioca de Santa Teresa. A filha não a visita muito, nem é por ela visitada – a “geopolítica” familiar é um tanto complicada, e pelo jeito a personalidade de Dulce contribui bastante para isso: ela se refere às cunhadas como “pestes” e aos filhos como “pestinhas”. O comportamento pouco equilibrado da protagonista transparece muitas vezes, e tem suas principais explicações radicadas em um abuso sexual sofrido na infância e no choque existencial causado pelo empobrecimento do pai, na mesma época, a que vêm somar-se uma série de inseguranças relacionadas à situação da família, principalmente ao marido, cujo sucesso financeiro lhe parece o tempo todo em risco devido à mania de arriscar dinheiro em especulações na bolsa de valores.

Salim Miguel, nessa parte do livro, mostra-se bastante hábil para transpor ao monólogo de Dulce (as falas da mãe podem apenas ser inferidas pelo leitor) as complicações da dona de casa ociosa, que conta com duas serviçais em seu espaçoso apartamento no bairro do Flamengo, complicações expressas numa mistura de tagarelice, divagação, devaneio e fantasias eróticas – pouco verossímeis, por sinal, suas intimidades com a mãe nesse particular. Em meio à falação de Dulce, vazam ocasionalmente farpas contra uma ditadura que, no momento da elaboração do romance, mostrava-se agonizante. Ao mencionar os altos faturamentos do marido em negociatas com empreiteiras, por exemplo, ela sublinha que “pra isso 64 ajudou”.

A voz “submersa” do título, mencionada duas vezes ao longo do romance, relaciona-se ao inconsciente, àquilo de que Dulce tinha uma percepção meio vaga, às vezes não querendo entender porque não lhe convinha entender – como no caso das “jogadas secretíssimas” que turbinavam os negócios de seu marido com o sócio fardado. Esse viés meio lispectoriano do narrador fica mais evidente na última parte do livro, quando ele empreende uma interpretação do contexto existencial de sua personagem.

Mas Salim Miguel não era Clarice Lispector, e essa parte final estraga bastante o livro. Funciona como um suplemento de que o romance tivesse necessidade para ser entendido; era totalmente desnecessária, e a obra seria bem melhor se se tivesse restringido ao monólogo telefônico. Do modo meio desajeitado como esses acréscimos foram feitos, a narrativa resultou numa alegoria um tanto desajeitada.

A voz submersa está longe de ser brilhante como A festa (1976), de Ivan Ângelo, mas ao menos não é tão artificioso como O caso Morel (1973), de Rubem Fonseca, e Reflexos do baile (1976), de Antonio Callado, romances que também se utilizaram de estruturas narrativas fragmentárias para denunciar a ditadura. E, quanto à denúncia, antes tímida e tardia do que inexistente.

Onde encontrar:
Livrarias e sebos