Dia infraordinário de pessoas desimportantes? Ou: mais um texto que só mulheres lerão

Fernanda Onuma
Aline Lourenço de Oliveira
Cilene Margarete Pereira

nosso dia-a-dia é feito de ações que não nomeamos:  pegar um livro virar a página digitar essas letras balançar a cabeça –  seria possível nomear isso que acontece?  o extraordinário comove fica evidente: guerra desastres morte mas como ver o infraordinário? (GARCIA, 2018, p. 27)[1]

 

Intitulado “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”[2], o relatório do Fórum de Segurança Pública e Instituto Datafolha sobre violências contra mulheres aponta que, somente nos últimos doze meses, uma mulher foi alvo de algum tipo de violência no país a cada 35 minutos. O ano de 2022 se destacou, segundo a pesquisa, como o mais violento dos últimos quatro anos, visto ter apresentado aumento em todas as formas de violências contra mulheres analisadas (verbais, físicas, sexuais, emocionais e psicológicas). As violências patrimonial e obstétrica não foram investigadas nas pesquisas.

Segundo dados do relatório, são múltiplos fatores que contribuem para explicar o acirramento de violências contra mulheres em 2022. Dentre estes, o destaque da pesquisa fica para o desinvestimento em políticas sociais e o avanço neoconservador contra o amplo debate social acerca das desigualdades de gênero. No entanto, a discussão das relações de gênero na sociedade brasileira segue apontada como mera “cortina de fumaça”[3] e não recebe a devida atenção das pessoas, nem mesmo daquelas tidas como “sensíveis à questão”, entre as quais se destacam os homens “progressistas” que se mantém alheios ao obstáculo epistemológico[4] de suas posições sociais privilegiadas.

Conforme o relatório, 28,9% das mulheres a partir de 16 anos de idade (18,6 milhões) foram alvo de alguma forma de violência ou agressão nos últimos doze meses. Deste percentual, 23,1% (14,9 milhões) correspondem a ofensas verbais, a forma de violência mais praticada contra mulheres no país em 2022. No entanto, somente “o extraordinário comove” e se evidencia, como nos alerta Marília Garcia em seu poema, epígrafe deste texto. Ou seja, o que move as mídias, as políticas públicas ou as conversas cotidianas são as formas mais brutais de violências físicas contra mulheres, como feminicídios, agressões físicas e sexuais. Fora deste “extraordinário” há o invisível, que são agressores sem nome ou rostos, indivíduos que infringem sofrimento, constrangimento e morte social, mas que não são responsabilizados ou reconhecidos pelos seus atos.

Estamos nos referindo ao “infraordinário”, um termo que Marília Garcia utiliza a partir da obra do poeta francês Georges Perec, que diz respeito ao

“[…] que acontece a cada dia e que sempre retorna, o banal, o cotidiano, o evidente, o comum, o ordinário, o infraordinário, o ruído de fundo, o habitual” (PEREC, 2010, p.  179 apud FROTA; OLIVEIRA FILHO, 2022, p. 72). 

Neste sentido é que violências na forma de ofensas verbais podem ser consideradas parte do infraordinário que cerca o cotidiano de mulheres. A “encoxada” em transporte coletivo, as “cantadas” no trabalho ou atitudes grosseiras, ofensivas e invasivas ao corpo de gestantes e parturientes que são tidas como “coisas de médico”, “coisas de hospital”, são situações vividas por mulheres de modo indiscriminado e que passam encobertas pela penumbra da “normalidade”.

Mas, como tratar do infraordinário uma vez que se é mulher, subalternizada numa sociedade marcada pelo patriarcado capitalista? E, como provoca a filósofa indiana Gayatri Chakravorty Spivak,[5] pode falar aquela que é subalterna do chamado “Terceiro Mundo”, como o Brasil? E, caso o faça, tem garantia de que será ouvida ou respeitada?

Spivak (2010) continua provocando a reflexão ao nos lembrar do alerta feito por Jacques Derrida, de que a crítica radical carrega o perigo da apropriação do outro por assimilação. Ou seja, o risco de que homens (em situação de privilégios) que afirmem “escutar” mulheres, o façam com fins de transmutar pautas até para usá-las contra aquelas que os criticam. Uma situação sintomática desta apropriação geradora de invisibilidade e silenciamento femininos é o que vemos em “celebrações” e “eventos comemorativos” do 8 de março, no qual se oferece flores, bombons e frases românticas sobre a beleza, doçura e gentileza da mulheres. Isso é um desvio abusivo e interesseiro do Dia Internacional da Mulher[6], no qual se retira o seu sentido de luta de mulheres trabalhadoras contra as mazelas da desigualdade promovida pelo sistema capitalista, substituindo-o por eventos corporativos e midiáticos que reforçam o lugar de subalternidade ao qual as mulheres foram relegadas.

Um parênteses que julgamos importante para esta data: existe, como já apontado pela matrona do feminismo brasileiro, Rose Marie Muraro[7], caráter revolucionário na discussão da cultura patriarcal, que não passa despercebida por quem controla a ordem social. Para além da ruptura da própria estrutura capitalista, acabando com a forma primeira de ódio e controle social pela via da ruptura da solidariedade no seio das classes trabalhadoras que a misoginia opera, haveria uma mudança de estrutura psíquica em toda a sociedade.

Segundo Muraro (2020), os homens perderiam o medo de seus próprios sentimentos, de sua entrega (o fim da seita redpill?), e as mulheres deixariam de ser dependentes da idealização que fazem dos homens. Homens e mulheres, meninos e meninas poderiam se relacionar muito melhor consigo mesmos e com as outras pessoas. O principal obstáculo para isso, aponta Muraro (2020), é a desvalorização social das mulheres. Se nossos corpos, emoções e subjetividades seguem vistos socialmente como “desimportantes”, reivindicamos a estes o respeito e a conotação que lhe deu Manoel de Barros. E conclamamos não apenas mulheres para transgredir este estado de coisas. Feito estes parênteses, voltamos à discussão.

Afinal, nada pode mudar se homens seguirem sentindo-se confortáveis em um país tão violento contra mulheres, encontrando justificativa na mentalidade de que por não nos agredirem física e/ou sexualmente acreditam não serem violentos contra mulheres, como se fossem verdadeiros “aliados” das lutas feministas, enquanto ignoram seu papel de agressores, como os dados da realidade brasileira indicados no início deste texto apontam.

No ambiente de trabalho, o fenômeno de desqualificação de mulheres e outros grupos minoritários, levando a prejuízos de ordem de saúde mental das vítimas foi foco de estudo recente[8], sendo reconhecido sob o termo gasligthing. Segundo seus autores, as pessoas que costumam realizar este tipo de prática apresentam características em comum (IRIGARAY; STOCKER; MANCEBO, 2023, p. 3):

Os gaslighters compartilham as seguintes características: não toleram a possibilidade de que alguém discorde deles ou os critique, tampouco aceitam que os outros vivam, ajam ou se comportem de modo diferente do que eles consideram correto (Abramson, 2014). Assim, gaslighting se revela um instrumento de manipulação que objetiva neutralizar as críticas e até mesmo a possibilidade de que sejam feitas, pois as vítimas têm sua capacidade de expressão e credibilidade minadas, bem como sua autoimagem questionada (Suskind, 2020).

O estudo aponta ainda homens cisgênero brancos e heterossexuais como os principais perpetradores desta forma de ofensa verbal. Os danos causados pela violência na forma de ofensas verbais extrapolam, contudo, os riscos à saúde mental de mulheres, pessoas LGBTQIAP+ e pessoas negras, como aponta o estudo. Tais formas de violência se encontram no marco zero do ciclo de violências contra mulheres que pode levar ao desfecho fatal conhecido como feminicídio. Rose Marie Muraro, em sua vida de militância e, sobretudo, durante a ditadura empresarial-militar brasileira, conheceu bem a realidade de que defender mulheres pode ameaçar sua própria vida. Silvia Federici[9] e Marcia Tiburi[10] já registraram como, em diferentes contextos, é perigoso a uma mulher afirmar o que pensa, a exemplo de tempos em que mulheres foram chamadas de “bruxas” e mortas por crimes que não cometeram, pelas mãos de homens que projetaram nelas a sua própria perversidade e as queriam caladas e obedientes.

Combater as ofensas verbais contra mulheres é, portanto, agir no ponto zero da desqualificação de mulheres, que dá início a outras formas de violências. É também atacar a principal forma de violência contra mulheres no Brasil atual. Consiste, portanto, em compromisso que deve ser firmado por todas as pessoas que, de fato, agem e não apenas discursam a respeito da importância da vida e dignidade de mulheres em datas isoladas, como no dia 8 de março.

[1] Extraído de: FROTA, Renata Andrade; OLIVEIRA FILHO, João Vilnei de. A desimportância como lupa: um processo de criação insignificante. Nava: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Design, v. 8, n. 1, p. 69-86, 2022.

[2] FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA; DATAFOLHA. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4.ed., 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-relatorio.pdf. Acesso em 01 mar. 2023.

[3] A este respeito: ONUMA, Fernanda Mitsue Soares; DE OLIVEIRA, Aline Lourenço. “Cortina de fumaça” ou misoginia? Desvelando a relação intrínseca entre avanço do conservadorismo moral e da austeridade econômica no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, v. 10, n. 1, p. 131-159, 2023.

[4] Como aponta Gaston Bachelard, são lentidões e conflitos internos que tornam difícil o ato de conhecer, afinal: “Quando o espírito se apresenta à cultura científica, nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus preconceitos”. Assim, por exemplo, um homem branco, cisgênero e heterossexual pode ter muita dificuldade em compreender violências contra mulheres porque não as vive e, assim, as invalida. Vide: BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 1.ed. 5.reimpr. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

[5] SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 4a.reimpr. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 174p.

[6] A este respeito, sugerimos assistir aos vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=bL5ZiCA5qTk e https://www.youtube.com/watch?v=l-r81wKkx4o. Acessados em 01 mar. 2023.

[7] MURARO, Rose Marie. Os seis meses em que fui homem. 8.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

[8] IRIGARAY, H. A. R.; STOCKER, F.; MANCEBO, R. C. Gaslighting: a arte de enlouquecer grupos minoritários no ambiente de trabalho. Revista de Administração de Empresas, v. 63, n. 1, 2023.

[9] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. 464p. 

[10] TIBURI, Márcia. Apresentação. In: MURARO, Rose Marie. Os seis meses em que fui homem. 8.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020. p.11-15.

 

Professora Adjunta na Universidade Federal de Alfenas-MG (UNIFAL-MG), no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – ICSA, campus avançado de Varginha-MG, desde 2013. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Sociedade da UNIFAL-MG (PPGPS/UNIFAL-MG). Representante da comunidade científica junto ao Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Varginha-MG (CMDM) desde 2019. Líder do tema “Gestão da pobreza: contribuições da teoria da reprodução social aos estudos sobre trabalho, organizações e educação” na linha de Estudos Organizacionais (EOR) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD), desde 2020. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Estado, Mulheres e Políticas Públicas (GENI/UNIFAL-MG) desde 2014. Foi Professora EBTT no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – IFSULDEMINAS, campus Muzambinho-MG, de 2012 a 2013. Doutora (2017), Mestre (2011) e Bacharel (2008) em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Tem experiência na área de Administração, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria da reprodução social, estudos de gênero, análise crítica do discurso, trabalho e estudos organizacionais.

Doutora e Mestre em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP; Graduada em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP. Realizou Estágio Pós-Doutoral em História Social da Cultura pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP. Atua na área de Letras, Ensino e Artes, com ênfase em Literatura Brasileira, Teoria e História Literária, Ensino de Literatura e Educação em Direitos Humanos e Artes.

Doutora e mestre em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA), especialista em Gestão de Micro e Pequenas Empresas (UFLA) e bacharel em Administração pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Atualmente é professora na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), campus Varginha. No ano de 2021 estará na liderança do Tema 11: “Gestão da Pobreza: contribuições da teoria da reprodução social aos estudos sobre trabalho, organizações e educação” na Divisão Estudos Organizacionais da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad). Os principais interesses de pesquisa, no momento, são a vivência estudantil no contexto educacional brasileiro e as condições de vida, estudo e trabalho das mulheres, em especial as mães. Esteve em licença maternidade no período de agosto de 2015 a fevereiro de 2016 devido ao nascimento do filho.