A História vista de dentro: Gabeira

Pensar que Fernando Gabeira está com 81 anos e chegou à idade provecta, como outrora se dizia, na condição de comentarista político da Globonews é um carrossel de emoções desencontradas. Isso, claro, para quem pode fazer o exercício retrospectivo de lembrar os tempos da anistia política, 1979, quando o ex-guerrilheiro causou escândalo midiático aparecendo numa praia do Rio de Janeiro, no retorno do exílio, usando uma sunga de crochê. Ainda havia o pensamento moralista de esquerda, depois confinado ao PCdoB e hoje transferido, com sinal trocado, ao politicamente “correto”. A abertura política permitiu a Gabeira ser um respeitado parlamentar – animal tão raro, como se sabe – e candidato à presidência da República e ao governo fluminense.

Como escritor, o grande sucesso de Gabeira foi O que é isso, companheiro?, romance autobiográfico publicado naquele mesmo ano de 79. O êxito estrondoso da vendagem do livro evidenciava a sede das pessoas por relatos sobre a ditadura militar, o mais das vezes transferidos para a literatura porque a imprensa esteve sob censura durante mais de uma década. O livro do jornalista nascido em Juiz de Fora era um típico produto dessa lacuna da memória nacional; tanto tempo depois, não perdeu seu efeito como relato (pessoal, mas de grande ressonância para o entendimento do que foi o regime militar) ficcionalizado de um tempo sombrio, ainda que se concentre em eventos transcorridos entre as vésperas do AI-5 (1968) e a libertação dos 40 prisioneiros políticos, entre eles o próprio narrador, trocados pelo embaixador alemão sequestrado por militantes da esquerda revolucionária.

Muita coisa pode ser pensada a partir de O que é isso, companheiro?, transposto para o cinema em 1997 por Bruno Barreto, num ótimo filme com trilha sonora composta por ninguém menos que Stewart Copeland. A narrativa de Gabeira, despretensiosa no estilo, mas informada a respeito das técnicas da ficção de vanguarda, consegue juntar fluência e complexidade. Começa por um episódio vivido no Chile quando do golpe de estado que instalou a mais sanguinária das ditaduras latino-americanas, a de Pinochet, e inicialmente transita, num vaivém algo desconcertante, pelos tempos de Gabeira no exílio – onde foi, por exemplo, maquinista de metrô na capital sueca – e pelo prelúdio da radicalização que o colocou, logo após o AI-5, na clandestinidade.

Gabeira era redator do Jornal do Brasil, então o veículo de comunicação mais prestigiado do país. Da sacada do edifício que abrigava aquele diário e a lendária Rádio Jornal do Brasil, presenciou as primeiras confusões de rua resultantes de protestos contra a ditadura, que culminaram na morte do estudante Edson Luís e na Passeata dos Cem Mil. Tudo isso é narrado pelo ângulo de quem viveu aqueles episódios, a princípio um pouco distanciadamente devido à condição de jornalista, logo em seguida de modo cada vez mais entranhado e pessoal. O relato de Gabeira se faz de pessoas de carne e osso, mas suas lembranças são encadeadas em forma de romance com rara habilidade. E, o mais importante, o escritor jamais incorre em qualquer tipo de maniqueísmo: evoca seus companheiros de militância com a piedade e a ironia possíveis, assim como tem capacidade de vislumbrar o que restava de humano em cada esbirro do regime militar, até mesmo nos torturadores profissionais, convictos ou não. Essa dificuldade de ser sectário, que tornou Gabeira alvo de tantas críticas no meio da esquerda especializada em estreiteza mental, é justamente o que o transforma em escritor digno de ser lido quatro décadas depois: a literatura de qualidade é, por definição, anti-ideológica. O narrador Gabeira constantemente pratica, como os melhores narradores da ficção “pura”, a auto-ironia.

Hábil anúncio do livro, o título nasce de um diálogo entre Gabeira e Dominguinhos, um militante que ainda não tinha 16 anos e, um pouco por isso, vestia a piedade espartana que caracteriza aqueles ativistas de esquerda tão incapazes de crer no improvável como seus antípodas da direita. Dominguinhos expressa com a pergunta do título seu escândalo pela sugestão do narrador, de que deixasse um pouco de lado a seriedade revolucionária e fosse, por exemplo, encontrar uma garota.

O andamento ágil da narrativa não impede que ela contenha muitas digressões. Gabeira aprendeu no jornalismo – e a grande imprensa brasileira já foi caracterizada pela alta qualidade de seu texto – como dosar a pura informação e um ritmo textual atraente, poroso como convém a um narrador competente. É também por isso que, mesmo cometendo erros bobos de concordância e ortografia (principalmente com nomes estrangeiros), o escritor tem seu lugar garantido na galeria dos clássicos da literatura brasileira.

Bastante curta, a maioria dos capítulos dá conta do processo de radicalização política que se seguiu ao golpe militar. Dos contatos iniciais com grupos de esquerda a sua entrada no MR-8, Gabeira vai compondo um variado painel das organizações revolucionárias multiplicadas depois que a ditadura se escancarou como tal: censurando, torturando e assassinando ao som de slogans “patrióticos”, alguns dos quais recentemente requentados. A radicalização força Gabeira a fugir para São Paulo, onde conhece o movimento operário e vai ampliando cada vez mais seu painel crítico, embora evidentemente simpático, das organizações de esquerda. De volta ao Rio de Janeiro, participa do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick; esse episódio é contado com detalhes no capítulo “Babilônia, Babilônia”, bastante mais longo que os anteriores.

Igualmente longo, o último capítulo se intitula “Onde o filho chora e a mãe não ouve” e dá conta da passagem de Gabeira, depois da prisão ou morte dos responsáveis pelo sequestro, por várias instalações da repressão ditatorial. Para sua “sorte”, ele leva, em sua captura, um tiro pelas costas que atinge três órgãos, tornando-o pouco apto a ser torturado. Mesmo assim, foi transferido várias vezes, passando por vários presídios e celas das polícias paulista e fluminense e do temível DOPS. Por incrível que pareça, estar no DOPS era um alívio para o narrador, se comparado às situações vividas em outros estabelecimentos onde a repressão era protagonizada por militares que encaravam a tortura como ofício necessário à “guerra” travada contra os ativistas de esquerda.

O que é isso, companheiro?, assim como Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, é daqueles poucos romances que conseguiram transformar a experiência de sobreviver ao regime militar em literatura isenta de conteúdo panfletário. São leituras muito recomendáveis nestes tempos em que um planificado apagamento da memória nacional tornou possível o patético, e há duas décadas impensável, desfile de vivandeiras na frente de quartéis. Lembrar o passado é imperativo, como se sabe, para não correr o risco de repetir erros trágicos. E isso vale para todos os lados do espectro político.

 

Título: O que é isso, companheiro?
Autor: Fernando Gabeira
Gênero: Política
Ano da edição: 2016
Selo: Estação Brasil

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


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