“O relato de uma mulher infeliz”, por Eloésio Paulo sobre o livro “A imaginária” de Adalgisa Nery

Devia haver uma lei universal obrigando todos os autores de livros a rever suas obras, senão antes de publicá-las, pelo menos a cada nova edição. Determinados deslizes são imperdoáveis, e não adianta colocar a culpa no revisor. A narradora de A imaginária (1959), por exemplo, a certa altura passa a dizer que tem “filhinhos”, mas o incauto leitor somente fora avisado do nascimento de uma dessas crianças. Falhas assim empanam o brilho de qualquer obra de valor. E o estofo ficcional do romance de Adalgisa Nery, sem dúvida, tem muito valor.

O romance é narrado em primeira pessoa por uma mulher chamada Berenice. O fato de somente ela ter nome, sendo as outras personagens chamadas por “o meu pai”, “o meu filho”, “a mãe de meu marido”, é significativo: os episódios narrados só nos aparecem pelo filtro da sensibilidade de Berenice, sendo sua visão do mundo e das pessoas a única versão de que dispomos. Um bakhtiniano chamaria isso de “monologismo”, e não seria boa notícia para a autora.

Essa versão única apresenta a vida da protagonista como um rosário de desventuras pontilhado por poucos momentos de satisfação: as horas solitárias da infância, quando desejava transformar-se em árvore; o amor aos 15 anos por um homem com quem se casa e a quem continuará idolatrando mesmo depois de saber-se traída; o nascimento dos filhos. Nem a pobreza nem os constantes deslocamentos de moradia em razão das instabilidades da vida familiar conseguem fazer Berenice infeliz: seu inferno, como diria Jean-Paul Sartre, são os outros, desde a tia que a tirava do sossego meditativo no quintal para usá-la como ajudante numa infindável descostura de vestidos.

Ironicamente, o par perfeito da protagonista será sua sogra, que do meio do romance para diante se transforma na grande vilã da história. É que a mãe do marido (este, uma projeção do primeiro consorte da escritora, o pintor Ismael Nery) passa o tempo todo pondo nos outros a culpa por todos seus males. Mas a autocomplacência da própria narradora é, na medida do possível, escondida do leitor, enquanto a velha é exposta em toda a sua mesquinhez, inseparável da loucura que a torna a grande personagem do livro.

A sogra, assaltada por uma agitação que a torna apta encenar para si mesma diálogos em que representa várias personagens de sua própria mente, lembra as melhores criações de Dostoiéviski, exceto pela tagarelice, que, em A imaginária, é atalhada pela narradora, a qual se encarrega de resumir os acessos de delírio perverso. E isso é uma pena, porque o aspecto tragicômico do “ambiente de possessos” que é a casa do marido, sobretudo se nele ganhasse papel mais relevante a tia solteirona, traria grande força ao romance, cujo andamento é bastante prejudicado pela prolixidade da narradora em suas auto-análises. A visão retrospectiva de seus próprios sentimentos se torna, por vezes, bastante enfadonha, sobretudo porque a autora não conseguiu atingir um grau mínimo de precisão na linguagem.

Em meio a esses discursos que nos fazem ansiar pelo início da próxima cena exterior, com personagens se movendo e falando, às vezes aparecem frases perpassadas pelo sopro da grande poesia. Tais passagens, como as cenas em que a narradora solta um pouco mais as rédeas de sua melhor personagem, já fazem valer a pena a leitura do romance.

Aldalgisa Nery foi, além de escritora, uma figura humana bastante interessante. Casou-se aos 16 anos e contra a vontade dos pais – tal como sua protagonista – com um pintor modernista que, é claro, na visão de uma família pequeno-burguesa, não tinha futuro. Como de fato não teve, pois morreu jovem e sem algo que se pudesse chamar de sucesso artístico, e na versão ficcionalizada pela companheira sai com a imagem um tanto arranhada. Adalgisa casou-se em segundas núpcias com Lourival Fontes, chefe do famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, depois entrou para a política e foi eleita três vezes deputada federal. Exerceu cargos públicos e viajou bastante, ao menos um pouco se pagando do amontoado de tristezas que narra em A imaginária.

Porém, como profetizara uma espécie de bruxa no início do romance, novas desventuras chegariam: a deputada teve seu último mandato cassado pelo regime militar, viveu uns tempos de favor numa casa do apresentador de TV Flávio Cavalcanti e morreu como interna de um asilo para idosos em 1979. Publicou, além de alguns volumes de poesia, outro romance intitulado Neblina (1972), mas renegou a própria obra literária depois de entrar para a política. Adalgisa merece menos o esquecimento do que muita gente hoje por demais lembrada.

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