Um adultério platônico

Na definição do narrador, A ladeira da memória (1949) seria um “romance de pauta lírica”. O que isso significa, na prática? Uma nova versão da prosa romântica mais atravancada de ideais distantes do mundo concreto. Mas o andamento narrativo da obra tem suas complicações; para começar, são vários os “climas” psicológicos, o que pode ter servido para justificar a inserção do autor, José Geraldo Vieira, na galeria dos ficcionistas “intimistas” que, a partir dos anos 1930, fizeram contraponto ao romance regionalista nordestino.

O enredo gira em torno de um amor adúltero. O que singulariza esse adultério até ao espanto é que o caso entre Jorge e Renata é rigorosamente casto: eles se encontram com frequência (certa vez, ao longo de vinte dias) e ficam sozinhos no meio do mato, mas não trocam nunca o mais tímido beijo. É verdade que, lá pelo meio do romance, o leitor fica sabendo que Renata tem tuberculose (mais um tópico romântico reciclado), e a doença chega mesmo a ser usada por ela para justificar a recusa ao beijo. O amor desse improvável casal se faz de longas conversas em torno de livros, discos e filmes. E nunca é dito, em mais de trezentas páginas, o nome do marido tão elegantemente traído; ele é sempre mencionado como “aquela pessoa”. Não que tal caso seja impossível de ocorrer, mas, no século de Freud, a elaboração psicológica dos personagens deveria ser bem mais robusta para a história ser convincente.

Jorge, cuja visão dos fatos é compartilhada por meio da narração, é um jovem médico radiologista, ou seja, alter ego do autor, para quem “todos os personagens essenciais de um romancista são de certo modo ele mesmo”. Estudou em Paris e Berlim (também como seu criador) e mora no Rio de Janeiro, mas, feito o diagnóstico de sua amada, resolve afastar-se dela para facilitar-lhe a cura. Então, muda-se para uma cidade situada quase na divisa de São Paulo com o Paraná, “Hacrêra” – especioso apelido para Marília, onde de fato (e lá vem mais autobiografia) o escritor viveu, trabalhando em sua especialidade e escrevendo vários romances, cuja recepção crítica e vendagem foram invejáveis para a maioria dos escritores de hoje. A ladeira da memória é o quinto deles, vindo depois A mulher que fugiu de Sodoma (1931) e A quadragésima porta (1944), por exemplo.

O enredo não é disposto de maneira linear, mas fragmentado em grandes blocos. Isso parece ter sido a justificativa para o julgamento excessivamente generoso de Alfredo Bosi, na História concisa da literatura brasileira, a respeito do “experimentalismo” formal de Vieira.

Tudo começa com uma viagem de trem que só será concluída nas últimas páginas; Jorge está voltando a uma fazenda situada no município fluminense de Itatiaia, onde vivera aquele idílio de vinte dias com Renata. Mas sabemos desde o começo, devido ao diálogo do protagonista com seu tio Rangel, que a amada havia morrido. É esse tio, desembargador aposentado, que o aconselha a “subir a ladeira da memória”, querendo dizer algo como recuperar os bons momentos da vida e fazer as pazes com o próprio passado.

Paralelamente ao drama amoroso, citam-se espaçadamente telegramas, publicados por jornais cariocas ou paulistanos, dando conta dos episódios mais importantes da Segunda Guerra. Os efeitos do conflito se fazem sentir por meio da falta de gasolina ou pelo desalento de alguns personagens devido à destruição da Europa, que quase todos conhecem.

Metade – ou mais – do livro é feita de discursos do narrador sobre sua própria ventura ou sofrimentos de amor. Quando há diálogos, eles são muito mal construídos, daquele tipo em que o ouvinte fica de cinco a dez minutos sendo informado, por seu interlocutor, de coisas que já está cansado de saber: um modo muito primário de passar ao leitor as mesmas informações, e somos obrigados a imaginar que cara faria o polo passivo da conversa ao escutar tão longamente a falação alheia. É assim já nas primeiras páginas, quando o tio Rangel tem um “acesso de erudição” e, a propósito de rejeitar o tabagismo, acaba por apresentar ao leitor o problema existencial-amoroso de Jorge.

Há passagens mais vivas e interessantes, como a narrativa do mesmo tio a respeito de seu retorno, com a mulher, ao antigo casarão do sogro, situado exatamente na real Ladeira da Memória, coração da capital paulista. A esse segmento da narração, comparece certa fauna urbana que confere algum colorido ao romance, habitado essencialmente por gente rica e apreciadora de objetos fetichistas de consumo: bebidas, gravatas, charutos, tudo de muito preço. O uso de estrangeirismos torna o estilo de José Geraldo Vieira especialmente afetado e esnobe, mas não impede o narrador de, entre outros deslizes, “entrar ali dentro”.

Mesmo nas passagens mais pedestres, o baixo-contínuo do intelectualismo pernóstico não deixa de se fazer presente. É o caso da viagem de Jorge à região do rio Araguaia; não falta, em meio às caçadas e à pescaria, um tal Fernando a vocalizar a exibição de cultura que não há outro remédio (pois que tudo é dito a sério) senão atribuir ao próprio escritor. Quando se recorda, umas poucas vezes, da “pauta lírica”, José Geraldo Vieira produz trechos como este:

O avião é uma coisa aturdida, insistindo em investir por sobre um édredon de nuvem

acolchoada e uma que o reduz a inseto em cima de flocos de creme Chantily. Não vejo

mar; não vejo terra. O vidro embaçado é uma escotilha na bruma do mar da Mancha.

O desfecho é aberto, apontando para uma redenção amorosa do narrador, cujos maravilhosos romances – claro, o médico radiologista é também um escritor de prestígio – haviam conquistado um novo coração, igualmente afeito ao oaristo (vai de propósito o preciosismo) refinado. Tomara que ela, essa “Calipso”, também não morra tuberculosa em plenos anos 1940, quando a estreptomicina já começava a ser usada com sucesso no tratamento da doença.

Título: A ladeira da memória
Autor: José Geraldo Vieira
Gênero: Romance
Ano da edição: 1949
Selo: Planeta