Romance a dez mãos? Não funciona

Samuel Wainer (1910-1980), nascido na Rússia e criador do jornal Última Hora, foi um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro no século XX. Um de seus projetos foi a revista Diretrizes, que em 1941, já transformada em jornal semanal, propôs aos leitores o desafio de adivinhar quem era o autor de cada capítulo da “novela” Brandão entre o mar e o amor. Esse experimento literário foi a primeira tentativa do gênero no Brasil; depois, já nos tempos do computador, o escritor paulista Renato Pompeu propôs novo projeto para uma narrativa longa escrita por vários autores.

Descobrir quem era o autor por trás de cada capítulo talvez fosse menos difícil para os leitores da época do que para os atuais, tão populares eram os escritores envolvidos. Mas, ainda hoje, o grande feito de cada leitor será imaginar que rumo a história tomará em cada segmento.

Os autores eram Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz. Tirando o penúltimo, todos faziam parte do grupo nordestino que resultou das propostas do Congresso Regionalista do Recife (1926), o que em princípio significa que tinham afinidades determinadas pela origem. Quanta diferença, porém, apesar das necessárias amarras de um enredo comum!

Coube ao escritor baiano, na época já o autor brasileiro mais conhecido, iniciar a história. E, hábil narrador (apesar do estilo desleixado que admitia quatro ocorrências do que na mesma frase), ele cumpre bem a tarefa de dispor as peças no tabuleiro. Coloca, em menos de 40 páginas, o protagonista Pedro Brandão na fazenda Pau d’Arco, no interior da Bahia, ao lado de sua velha mãe e de Lúcia, a mulher que ele havia salvado de um naufrágio. De marujo aventureiro, Brandão resolvera – por causa de Lúcia – converter-se em um pacato fazendeiro. O narrador ainda introduz no enredo um casal de pobres cuja miséria contribuirá modestamente para o andamento dos próximos capítulos, além do anúncio de que Brandão era um sujeito sentenciado à morte por certa doença cardíaca. Lá no último capítulo é que ficaremos sabendo, sem direito a maiores explicações, tratar-se de um aneurisma.

O capítulo de José Lins do Rego introduz no enredo a complicação representada por Mário, amigo da juventude de Brandão, que vivia uma crise existencial e conjugal e instala-se na fazenda do protagonista para passar uma temporada. Aparecendo umas cartas de que ninguém sabia até então e um telegrama, este no papel manjado de Deus ex machina, tipo de recurso muito aquém do talento do escritor paraibano, Mário acaba permanecendo na fazenda por muito mais tempo do que o esperado. Ele se apaixona pela mulher do amigo e a sua própria, mais adiante, virá sob o pretexto de cuidar dele e também acabará ficando; por sua vez, ela (seu nome é Glória) apaixona-se por Brandão, que a despreza. Essas complicações já são o suficiente para quebrar o sossego buscado pelo antigo marinheiro na vida em terra, e, para começar, sua relação com a mulher começa a envenenar-se, Lúcia passa a parecer-lhe mais misteriosa do que a havia conhecido.

Se já devia ser difícil para Lins do Rego, tão afeito às memórias do engenho de açúcar, continuar uma história começada no mar, tanto mais para Graciliano Ramos, sertanejo das Alagoas, homem de estilo avesso a molhadezas de qualquer tipo. O capítulo “Mário”, cujo título já traduz a secura do estilo de Graciliano, é um choque; nele, o advogado medíocre e dependente do sogro, este um respeitado jurisconsulto da capital baiana, ganha tal profundidade que chega a lembrar Luís da Silva, personagem principal do magnífico romance Angústia (1936). Isso começa a desequilibrar o livro, fazê-lo inconsistente, pois a densidade do estilo de Graciliano não congemina com a narrativa frouxa dos episódios anteriores e tampouco é capaz de corrigi-los retrospectivamente.

Outro corte será produzido pelo episódio seguinte, a cargo do mineiro Aníbal Machado, que ainda enche mais a fazenda e, portanto, faz crescer o incômodo de Brandão. Com a presença de um padre e de um pai-de-santo, ambos vindos para tentar resolver o problema psicológico-espiritual-sentimental de Glória, começa a aparecer gente miserável e desesperada em busca de bênção, conselho ou milagre. A fazenda torna-se quase um ensaio de Canudos, desdobrando-se a pobre Dona Elizabeth, mãe do protagonista, para cuidar de tantos hóspedes e remediar a situação de tantos pedintes. Glória não amava o marido e estava apaixonada por Brandão, que nada queria com ela. Do pai-de-santo, ela esperava uma mandinga qualquer que seduzisse o homem alheio. Mas, e a outra? Não estava nem aí, pois seu distanciamento de Brandão culmina com a cena em que Lúcia se oferece descaradamente ao médico aparecido para cuidar de Mário. Esse capítulo de Aníbal Machado ainda cria certo clima meio surreal, que destoa bastante dos três anteriores.

A esta altura, o leitor talvez se pergunte: pobre da Rachel de Queiroz, como vai consertar essa bagunça? Não conserta. Seria de esperar que a autora de O quinze (1930), outra obra-prima do romance brasileiro, desse jeito à confusão, mas seu capítulo apenas consegue encerrar a história de modo um tanto óbvio, com o retorno de Brandão (que no episódio anterior havia voltado à vida de marinheiro) seguido de um insípido reencontro com Lúcia – no qual fica claro que ela havia sido prostituta – e finalmente o cumprimento, pelo aneurisma, de sua função determinada logo no início da narrativa.

Talvez o resumo dê a impressão de que o livro é, em alguma medida, empolgante. Não é. Tantos talentos juntos acabaram resultando num lego ficcional cujas peças não se encaixam direito. As inconsistências sobram, a falta de rumo do enredo só serve para confirmar que um grande romancista é um grande solitário.

Título: Brandão entre o mar e o amor
Autor: Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz
Gênero: Romance | Novela
Ano da edição: 1942
Selo: Martins


Eloésio Paulo é professor da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.