Goiano entre aspas

O escritor goiano José J. Veiga publicou quase duas dezenas de livros de ficção, carreira iniciada em 1959 com os ótimos contos de Os cavalinhos de Platiplanto. Sua forma narrativa preferida acabou sendo a novela, de que deu à literatura brasileira exemplares notáveis como A hora dos ruminantes (1966) e Sombras de reis barbudos (1972), duas alegorias do regime autoritário imposto ao país em 1964, aquele mesmo que alguns desmemoriados andaram por aí dizendo nunca ter havido.

Alma inquieta, o ficcionista trafegou quase sempre pela via do realismo fantástico, mas no Almanach de Piumhy (1987) ele resolveu bagunçar o coreto de vez: esse econômico volume “restaura” um periódico sul-mineiro cuja única edição teria saído em 1828 na cidade cujo nome lembra o apito daqueles trenzinhos que não viajam mais. Piumhy é uma palavra indígena que significa “água cheia de mosquitos”; o município localiza-se às margens da represa de Furnas, estando sua sede a 90 quilômetros de Passos.

A edição imaginária do almanaque é um livrinho desconcertante, que lembra um pouco o Bouvard e Pécuchet (1881), de Flaubert, por sua ridicularização da cultura inútil. Olhado por outros ângulos, apresenta-se como objeto saudosista ao recuperar um pouco da atmosfera de um tempo em que as informações precisavam ser buscadas, em vez de nos bombardearem em escala quase cósmica por meio de intromissões em nosso celular, algumas tão misteriosas que nos fazem desconfiar de sortilégios operados por meio da tecnologia – a internet nos “ouve” sem que saibamos e, fantasmagoricamente, responde a perguntas que nem pensamos em formular.

Palavra de origem árabe, almanaque designava um local onde viajantes se reuniam para, entre outras práticas, conversar fiado. Na tradição editorial brasileira, nomeou um tipo de revista associado à mistura de divulgação comercial e divertimento. O mais famoso foi publicado durante décadas pelo Biotônico Fontoura; era distribuído gratuitamente em farmácias e trazia matérias as mais diversas – calendário de épocas do ano adequadas ao plantio de espécies vegetais, anedotas, curiosidades históricas, pequenas peças de ficção.

O almanaque de José J. Veiga vai um pouco nessa linha, mas a todo passo ironiza a aleatoriedade e a descartabilidade das informações que veicula. Seu registro é o do humor, e fortemente vincado por seu momento histórico, daí as constantes referências a temas e personalidades hoje relegados ao esquecimento, já que a maioria das pessoas jura que o mundo começou anteontem: a dívida externa brasileira, por décadas, considerada impagável; figuras da política local e internacional no fim dos anos 1980; a expectativa de certa classe de brasileiros informados pelo que resultaria da Constituição de 1988, então sendo gestada nos escaninhos da “Nova” República meio natimorta com a agonia de Tancredo Neves. Curiosamente, o autor evita a todo custo mencionar o nome do então presidente da República, José Sarney, mesmo quando se refere à grande chance que os vices têm de galgar o poder nesta abençoada terra.

Passagens desse tipo podem ser até meio chatas, mas o que caracteriza um almanaque é a variedade. Nunca sabemos o que pode vir na página seguinte, muito menos quais serão a tipologia e o padrão gráfico utilizados. Desde o expediente, que mistura nomes parodiados de “colaboradores” reais (Vasco da Gama, Fernando “Babeira”, Chuang Tzu) com personagens a princípio imaginários (o professor Espasmo Gentil, os correspondentes estrangeiros Dick Watergate e F. Sauerkraut – sendo que o primeiro destes, pensando bem, remete a Richard Nixon), até a série de curiosidades abstrusas que ponteia a sucessão de curtos textos do Almanach, tudo é surpresa. E não duvide o leitor de que confirmará, caso se anime a procurá-la num livro intitulado Letters from Iceland, a existência da maior palavra existente em qualquer língua, composta por nada menos que 56 letras.

Pode ser que alguns perguntem de que lhes servem tais informações, mas em geral serão os mesmos que não se questionaram da mesma forma ao ler, no jornal da última segunda-feira, a “revelação” de Xuxa sobre os gadgets sexuais que aprecia usar com o namorido de turno. Não se deve subestimar a inteligência de um escritor como José J. Veiga – há boas chances de ele estar praticando profundas ironias quando lista dados como o peso atômico do berquélio e o nome do pesquisador sueco que descobriu o lautâmio; ele não poderia estar afirmando, profeticamente, que os pouco populares elementos químicos têm mais importância para a vida de qualquer pessoa que as perversões (Freud dixit) das “celebridades”?

Outro parentesco do livrinho é com os geniais Planeta Diário (jornal) e Casseta Popular (revista), que, surgidos logo depois do fim da ditadura, representaram o ponto alto da criatividade no humor brasileiro, logo transplantada para a também brilhante TV Pirata e pouco depois destruída pela patrolagem low brow do padrão Globo de “qualidade”. Na reportagem intitulada “Adeus à calvície”, em estilo bussundesco, Veiga transforma o então notório (e, pelo jeito, agora eterno) Esperidião Amin, direitista modelar egresso da fase agonizante do regime verde-oliva, em farmacêutico responsável pela criação de certo infalível tônico contra a falta de cabelos. Em tempo, para quem não se lembrar: Amin é um notável e convicto catarinense careca.

Mas o ponto alto do livro são as passagens nonsense:

“Então ela foi à horta apanhar uma folha de repolho para fazer um pudim e de repente uma ursa enorme veio correndo, enfiou a cabeça na janela e exclamou: “O quê! Não tem

sabão?” Aí ele morreu, e ela – que imprudência! – tratou de se casar com o barbeiro.

Estiveram presentes os Picnines, os Jobililes, Gariules e o Grande Panjandro em pessoa,

com o botãozinho vermelho em cima, e todos resolveram jogar o catch-as-catch-can até

que a pólvora vazou pelos saltos dos sapatos deles.”

Por falar em Google (ué, alguém falou em Google?), uma descoberta possível no Almanach é a origem dessa palavra hoje onipresente, googol, criada para designar uma grandeza numérica quase inimaginável. Mais divertido, em meio às frequentes implicâncias gramaticais do escritor, é o curioso horóscopo, garantidamente “unissex”, que abusa do palavreado esdrúxulo (dendrobata, quaquaversal, bunodontes) e transcreve, em sua previsão para dois dos signos, trechos de manjados (?) sonetos de Camões.

Versão muito resumida e esculhambada do Thesouro da Juventude, enfim, o livrinho do escritor goiano foi escrito para fazer rir, e não para ilustrar teorias sobre a intertextualidade. Leitores que apreciarem seu texto arejado vão, provavelmente, lamentar este grande defeito: não ser realmente enciclopédico. Hoje, desnecessário dizer, José J. Veiga seria “cancelado”, como, por sinal, se cancelaram a si mesmos os sobreviventes da Casseta e do Planeta: onde se consegue, em dia, ouvir o debochado LP Preto com um buraco no meio, bíblia fonográfica do politicamente incorreto?

Título: O Almanach De Piumhy
Autor: José J. Veiga
Gênero: Ficção | Curiosidades
Ano da edição: 1989
ISBN: 8510342490
Selo: Record

Eloésio Paulo é professor titular da UNIFAL-MG e autor dos livros: Teatro às escuras — uma introdução ao romance de Uilcon Pereira (1988), Os 10 pecados de Paulo Coelho (2008), Loucura e ideologia em dois romances dos anos 1970 (2014) e Questões abertas sobre O Alienista, de Machado de Assis (2020). Desde 2021, colabora com a coluna “UNIFAL-MG Indica” do Jornal UNIFAL-MG e atualmente assina, no mesmo jornal, essa coluna exclusiva semanal sobre produções literárias. “Montra” significa vitrine ou espaço onde artigos ficam em exposição.


(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal UNIFAL-MG são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do Jornal UNIFAL-MG e nem posições institucionais da Universidade Federal de Alfenas).